terça-feira, 11 de outubro de 2011

POESIA: EROTISMO, PORNOGRAFIA E OUTRAS SACANAGENS


Erotismo, pornografia e sacanagem. Palavras diferentes para expressar o que deveria ser igual – mas, por diversos motivos, não o é. Falar e escrever sobre sexo tornou−se um sentido perdido na comunicação humana. O moralismo pequeno−burguês que nos cerca estabeleceu um código de comportamento para atos públicos e ações privadas.

Sexo, definitivamente, é um assunto privado. Privado de liberdade. Entre quatro paredes vale tudo − costuma−se anunciar quando se quer dizer que a expressão do desejo é luta, é forma de transgressão. Não me importo com o que as pessoas façam – desde que não façam na rua e não assustem os cavalos, disse, no século XIX, a atriz Pat Campbell, a lembrar que, no teatro da vida, existem tapumes a separar o palco e os bastidores, o comportamento íntimo e a civilização. Algo assim: tesão tem hora! Se tiver vontade no meio da manhã, segure a barra! Segure o que tiver vontade de segurar − e se perder a vontade de segurar, solte. Só não solte a franga, porque é preciso se controlar, mostrar atitudes de cavalheiros e damas da corte inglesa. Mostre ao que nos levaram dois mil anos de educação: repressão, contenção, negação, interdição.


Sexo, definitivamente, exige cuidados. Além da possibilidade de gerar filhos, fantasmas como gonorréia, sífilis e Síndrome da Imuno−Deficiência Adquirida estão, em todos os lugares, a nos avisar que não devemos sair por aí, fudendo adoidado. Outra coisa: expressões como "fudendo adoidado" também não são recomendadas. O politicamente correto fudeu com toda a espontaneidade. É preciso parar e pensar antes de dizer o que é preciso dizer. Ou melhor, antes de qualquer coisa, é preciso passar na farmácia e comprar o kit básico contra o medo: preservativo, KY, Viagra (ou Cialis ou Levitra ou o que for recomendado pelo seu, meu, nosso médico). Sem esses acessórios não dá, como avisa o Ministério da Saúde. Sem esses cuidados não é possível deslizar embaixo das cobertas, a cobrir o que precisa de cobertura, a conjugar, na ponta da língua, os verbos mais saborosos: olhar, desejar, beijar, despir, chupar, comer, dar, introduzir, receber, abrir, fechar, meter, tirar, gozar. Sem os mais elementares desassossegos não será possível ultrapassar a barreira da inocência: eu mostro, se você mostrar também. Não será possível encenar cena clássica, aquela que o inconsciente (literário, cinematográfico) vive a repetir: depois do esforço físico, uma das partes encontra energia para acender o cigarro e perguntar: "Foi bom para você?"


Sexo, definitivamente, está envolto em preconceito. Parte da canalhice está em considerar que a pornografia é apenas uma diversão masculina e que o erotismo é uma forma elevada de deleite estético feminino. Alguns teóricos, para ampliar essa discriminação, argumentam que os textos que descrevem mil e uma travessuras sexuais não estão preocupados com a técnica narrativa ou com qualquer tipo de pesquisa de linguagem, constituindo elaborada produção discursiva para incrementar o fluxo sangüíneo de uma parte específica da anatomia masculina. Ou seja, a pornografia é apenas uma forma de incentivar a masturbação dos homens sem−vergonha, doentes, tarados. Bobagem. Confundem a procura pelo prazer com o proibido. Ou melhor, como o medo de tornar público aquilo que consideram o proibido. Inclusive porque a sexualidade não é território inacessível ao feminino. Homens e mulheres gostam de sexo, de sacanagem − essa é uma das maneiras com que a união do masculino e do feminino se conjuga. E isso é o que é necessário saber.



Sexo, definitivamente, não é amor. E, claro, amor não é sexo. Só porque um casal (ou todos os participantes dessa suruba mental que envolvem todos os participantes das brincadeiras em cima de uma cama) resolve praticar uma troca de fluídos corporais isso não significa que vão ser felizes até que a morte os separe. A grande invenção da modernidade, o "ficar", que muitas vezes leva ao "fincar", é um das poucas mudanças de comportamento sexual na direção do prazer. Se não foi bom, adeus; se quer continuar, que engate a rola nesse rolo. Tentativa e acerto. Sem compromisso. Sem essa de enganação: princesas e príncipes encantados são truques de conto de fadas, o bom mesmo é o canto das fodas, entre ais e uis e a vontade de quero mais. Vai dizer que nunca sentiu a alma a fugir do corpo? Vai dizer que nunca revirou os olhos, enquanto o sol e a lua explodiam em beleza e calor? Vai dizer que nunca "voou sem asas", como aquele personagem do Boccaccio?


Se eu acho que o sexo é sacanagem? Só quando é bem feito, disse Woody Allen, introduzindo o humor no orifício em que a vontade de ser feliz se abre em flor, êxtase e delícia, comprovação de que trepar é bom, bombom, o licor a escorrer pelos dedos, a mão naquilo e aquilo na mão, passeios na contra−mão do bom comportamento, fruição do gozo gozado para quem está na linha de batalha entre lençóis de linho egípcio ou diante de filmes pornográficos de terceira classe − em alguns casos, sem classe.



Luisa Coelha, no prefácio do livro de contos que organizou, Intimidades, não economiza explicações: O discurso pornográfico é aquele que torna o ato sexual transparente, revelando aquilo que à sexualidade do dia−a−dia é invisível, numa estética hiper−realista, onde as cenas descritas são mais reais que o próprio real (acumulando uma grande quantidade de sinais que acabam por afastar a realidade) e em que o sexo surge sem relação com o sujeito, sem intimidade e sem alteridade.




Pois é. O que Luisa quer dizer é que sem o outro não há gozo. Sem parceria não é possível boa saúde mental. A imagem é apenas imagem, nunca a vontade de ultrapassar a projeção. Em outras palavras, o texto pornográfico é uma forma de espiar pelo buraco da fechadura, uma forma de invadir a vida do Outro. Uma forma transversa, travessa, de sentir o que gostaríamos de sentir e que não é possível sem o uso de alguma forma de intermediação. No fundo, bem no fundo, apenas um recurso de quem sente prazer em gozar com a ajuda do pau do outro, dos outros.

A pornografia não é o tipo de literatura que devemos recomendar às boas famílias, aquelas que acreditam que a cegonha deposita os bebês embaixo dos pés de couve. Todo tipo de narrativa rotulada como pornográfica, obscena, licenciosa, fescenina e erótica está proibida de freqüentar as "altas literaturas". São textos "sujos", que devem ser excluídos do convívio social. Com as famosas exceções de sempre (Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de mais uns dois ou três pornógrafos eméritos), a tendência geral é a de considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não−verbais de caráter sexual.


A literatura brasileira, encharcada pela água e o vinho do catolicismo, também prima pela adoção desse sistema de valores. E isso muitas vezes resulta em grandes contradições, em equívocos lamentáveis e em gargalhadas saborosas. Como a modernidade eliminou as "marchas por deus, pela pátria e pela família", onde eram exorcizados os demônios mais perigosos, mais tentadores, precisou−se de novos inimigos. Um deles é a moralidade comportamental. A pornografia se transformou em metáfora do final dos tempos, de dissolução da família, de degradação social. Esqueceram de combinar com o mundo que as imagens que ilustravam os "catecismos" do Carlos Zéfiro agora estão expostas na internet, literalmente ao alcance da mão de todo tarado virtual.

O discurso pornográfico está em posição oposta ao discurso erótico: "uma representação verbal mais completa de Eros, com todos os seus componentes, e não apenas como uma exploração grosseira e gratuita da libido". Hã? Luisa Coelho, ao apresentar as duas definições, quer nos dizer que existe um hiato entre "esses livros que se lêem com uma só mão", como definiu Jean−Marie Goulemot, e a excitação contida (nos dois sentidos) nos textos mais sensíveis à estética e ao bom comportamento. Non−sense. Sacanagem é sacanagem e todos (homens, mulheres, homossexuais e abstêmios) cultivam essa quebra do comportamento moral burguês. A discussão não é entre pornografia, erotismo e sacanagem – é entre hipocrisia e coragem de assumir que o discurso sexual atravessa nossas vidas com intensidade e obsessão.

Nos anos 80, a editora Brasiliense publicava uma revistinha institucional: "Primeiro Toque". Em um dos números, uma definição que merece atenção: erótico é tudo o que excita; pornográfico é tudo o que assusta. Entre o que assusta e o que excita corre um filete (provavelmente, um estilete) muito tênue, que torna difícil de separar isto e aquilo – a vida é assim mesmo, um pouco estranha, muitas vezes contraditória, sempre confusa, agradavelmente complicada.



Adeus recato, bom comportamento é desacato às leis do desejo. Toda trepada vale a pena se o desejo não for pequeno, digo, se o desejo for grande, que pequeno é adjetivo proibido no universo fescenino. Homens odeiam qualquer menção aos tamanhos mínimos, mulheres sonham com brinquedos imensos. Homens e mulheres ambicionam orgasmos capazes de fazer a Terra sair da órbita. Tamanho é documento. Ou afrodisíaco. Talvez essa seja uma das explicações para que o discurso sexual encontre morada no caudal interminável que á prosa. No prefácio de Delta de Vênus, Anaïs Nin conta que foi contratada para escrever várias histórias eróticas. Um dia, recebeu um telefonema. Ouviu uma voz a lhe dizer, a respeito do trabalho já entregue: Está ótimo. Mas deixe de fora a poesia e as descrições de qualquer coisa além do sexo. Concentre−se no sexo. Deixe de fora a poesia, disse a voz, unificando a expressão do desejo com o habitat da excitação – impasse em que está expresso o que ele queria ler e ela não queria escrever.

Historicamente, muitos leitores ignoram (ou fazem questão de ignorar) a carga hormonal que está impregnada no corpo poético. Nos primórdios da história literária somente a poesia tinha lugar na transmissão do conhecimento. Livros fundamentais como a Odisséia e a Iliada foram escritos em versos – embora a modernidade os estupre em prosa.

De qualquer maneira, a poesia é o sal da terra, o cio da fera, momento que não tolera espera, urgências da carne, frêmitos da paixão, fruta pronta para ser desfrutada por quem não tem medo de saborear o sumo. Por quem não tem medo que a libido suma − visto que é soma e não subtração. A poesia é a fala expressa pelo verso, mistura do phalo com falácias, falésias, falências e felácios, momento em que o abismo se confunde nas palavras e carícias, sussurros no ouvido, arrepios olvidados pelas promessas de que o gozo se completará. A cada verso, conversa; a cada estrofe, a surpresa limítrofe; a cada poema, teorema.



Quando Platão expulsou a poesia do mundo intelectual não o fez porque não a compreendia ou por ser pudico. O fez por entender o caráter subversivo das palavras, por combater o poder de sedução de um discurso que muitas vezes despreza a racionalidade. Isto é, no jogo da vida muitos gostam de enganar o coração, fingem escolher a razão para fugir da emoção. Pura enrolação. E é por isso que muita gente adora rimar amor, flor e dor. Em lugar de descrever que os homens vivem com a flecha pronta para disparar e as mulheres com a aljava úmida, muito poeta prefere canalizar suas energias na brochada, no amor inalcançável, na interdição do desejo. Nesse deserto de idéias nada salva, nem mesmo amendoim, catuaba, ostra ou ovos de codorna.

A boa poesia é aquela que arrebenta com as comportas, arregaça as portas fechadas pela mediocridade, desliza pelo imaginário como se fosse lubrificada pela obscenidade que é a vida.

Dito tudo isso, que de certa forma não significa nada, cabe lembrar que a pornografia, o erotismo, as sacanagens e a poesia são formas de aproximar o imaginário do concreto – sem esquecer, como se dizia antigamente, que com cuspe e paciência tudo se ajeita.







(TEXTO ESCRITO ESPECIALMENTE PARA FACVEST E APRESENTADO EM 10/10/2011)


quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ACORDE-ME QUANDO SETEMBRO TERMINAR




Os atos sórdidos que os seres humanos cometem uns contra os outros não são meras aberrações – são parte essencial daquilo que somos.  (Paul Auster: Homem no escuro)


1. INTRODUÇÃO

No dia 11 de setembro de 2001, ocorreu o seqüestro de quatro aeronaves de passageiros: duas se chocaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Yorque, a terceira atingiu o Pentágono, em Arlington (Virgínia), e a quarta caiu próxima de Shanksville (Pensilvânia), depois que alguns passageiros e tripulantes tentaram retomar o controle. Não houve sobreviventes nos quatro seqüestros. As investigações oficiais contabilizaram 2.996 mortos. Esa é a imagem residual de que sempre nos lembraremos.

Uma das conseqüências imediatas dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 foi que parte da literatura ficcional ocidental (especialmente a estadunidense e a inglesa) tentou se apropriar do real.

O real deve ser entendido, literariamente, como a forma estética que fornece legitimidade à representação e à experiência da realidade, embora seja necessário entender, como explica Beatriz Jaguaribe, que "o paradoxo do realismo consiste em inventar ficções que parecem realidades".

A pretensão de emoldurar o real em um projeto literário resultou em dezenas de romances, contos e poemas – todos unidos por uma proposta ambiciosa: ultrapassar a transcrição ficcional. Para alguns autores, o caminho para executar essa tarefa implica em abusar da verossimilhança ou de aventuras próximas dessa maneira de manejar o constructo socio­cultural e político.

Tentando encontrar novas versões para histórias que sirvam de referencial para interpretar a tragédia, o discurso literário − gerado pelos acontecimentos relacionados com o 11 de setembro − procurou/procura abrigar em suas páginas as diversas maneiras de discutir o descompasso causado pela intolerância humana.
Alternando o ponto de vista das vítimas com a ótica do oprimido, identificando os elementos ideológicos e as reações contrárias, reconstruindo ficcionalmente os acontecimentos físicos e psicológicos (muitas vezes tangenciando a invenção biográfica), fornecendo visibilidade para o entorno (político, social, econômico, militar, religioso,...) e explorando (em algumas circunstâncias, de forma exagerada) os sentimentos mais dolorosos, esse projeto literário também se detém nas relações assimétricas que separam o Ocidente do Oriente.

Como um divisor de águas, a comunidade internacional reconheceu no 11 de setembro um momento significativo da modernidade: em lugar da diplomacia, do entendimento entre as partes, é o conflito que define o mundo competitivo, eficiente e excludente que o capitalismo incentiva. Em outras palavras, a modernidade tecnológica está conectada com a ética do combate, da eliminação sem piedade ou análise, daquilo que é problema. Por analogia, a destruição do que é antagônico, adversário ou inimigo.

Nesse tom, o choque de civilizações (conceito formulado por Samuel Huntington) evidencia a dificuldade em encontrar o equilíbrio necessário para resolver as questões fundamentais da contemporaneidade: governos autoritários, ganância econômica, restrições religiosas e comportamentais, negação da História e dos avanços científicos, intransigência com a diversidade (política, religiosa, cultural, sexual,...).


2. MARCO ZERO

No "sussurro de um vendaval em formação", Kurtz, um personagem literário sempre lembrado em situações extremas, não precisou de muitas palavras para relatar a catástrofe: "O horror! O horror!". Em sintonia com a perplexidade e o pânico, a agressividade resultante dos acontecimentos de 11 de setembro falou mais. Muito mais. E mais alto.

A transmissão pela televisão, em tempo real, do ataque contra a segunda torre do World Trade Center comprovou, como enfatiza Susan Sontag, a "teleintimidade com a morte e a destruição" que caracteriza determinado segmento da sociedade estadunidense. O ataque aéreo evidenciou que a propaganda ideológica é constituída por efeitos visuais e ausência de substância. E foi nas labaredas produzidas pela gasolina dos aviões que, para usar uma expressão de Jean Baudrillard, o Power inferno destruiu o Paraíso mítico − idealizado para que o prazer e a felicidade fossem oferecidos como mercadorias ideológicas.

"A indescritível e horrenda mutilação do ser humano", como assinala Susan Sontag, está visível nos ferros retorcidos das duas torres em chamas. Laurence Wright, analisando as ruínas da tragédia, lembra a "água [que] jorrava do teto, criando poças no chão de mármore (...), [as] pessoas [que] começaram a se atirar pelas janelas da torre norte, acima do combustível em chamas", a fumaça e poeira ("uma mistura de concreto, asbesto, chumbo, fibra de vidro, papel, algodão, combustível de jato e restos orgânicos pulverizados das 2749 pessoas mortas"). Esses destroços destroem quaisquer possibilidades de salvação.

O som intermitente das sirenes (ambulâncias, bombeiros, policia), os gritos desesperados (das vítimas, dos espectadores) e o show feérico das explosões compõem uma trilha sonora muito especial para a catástrofe.

A agressão dupla contra o World Trade Center, além dos dois outros seqüestros, atingiu o plexo solar do ego estadunidense, revelando a fragilidade, mostrando a vulnerabilidade. Conseqüência da ação furiosa do Outro – daquele a quem o contexto hegemônico sempre procurou negar o existir −, esse golpe no queixo na prepotência forneceu visibilidade para o percurso efetuado pela rachadura, desde a fissura ínfima até a fratura completa. Diante do poder de destruição oferecido pelo "excesso de realidade transformada em imagem", como assinala Susan Willis, através de obscena repetição (nos noticiários, nos documentários, nos filmes, na literatura, na Internet), a cultura narcisista estadunidense (eternamente sedada pelo patriotismo) precisou superar a perplexidade para se levantar do solo, onde fora jogada pela violência dos acontecimentos do 11 de setembro.

O escritor Colum McCann estava em seu apartamento em Manhattan, acompanhado da mulher e da filha, no momento que ocorreu o ataque às torres gêmeas. Quando esteve no Brasil em 2010, o jornalista Roberto Kaz, que o entrevistou, relatou em texto uma história impressionante: "Primeiro a tragédia lhe atingiu através da poeira – “Restos de concreto e sabe-se lá o quê” –, turvando as janelas de sua casa. Depois, pelo relato de seu sogro, sobrevivente do World Trade Center. “Minha filha, quando o viu, cheirando a queimado, começou a chorar, dizendo que o avô estava pegando fogo”, contou McCann. “Tentei explicar que era só a fumaça, mas ela disse que ele estava queimando de dentro para fora”. Ele percebeu que a frase, em princípio ingênua, poderia descrever o país."

Como conseqüência do que alguns analistas descreveram como um contato íntimo com a realidade, a política estadunidense precisou se adaptar a novo cenário – muito mais nacionalista, reacionário, dependente das estruturas policiais e militares (aparelhos ideológicos do Estado que, em situações de emergência, não apresentam diferenças substantivas).


3. CULTURA CAPITALISTA

O dia 11 de setembro deve ser lembrado como um dos grandes momentos da história do jornalismo − mais especificamente, do jornalismo televisivo. Na sociedade do controle de informações, onde nada escapa aos olhos (oniscientes, onipresentes, onipotentes) do Big Brother, os espectadores potenciais dos acontecimentos gerados no dia 11 de setembro foram privados da primeira parte da catástrofe (exceto por acaso ou em replay). Como compensação, a segunda colisão foi transmitida ao vivo e em cores.

O compromisso profissional de mostrar a notícia, no momento em que o fato está ocorrendo, ratificou a tese que a selvageria humana encontra no espetáculo midiático o seu espelho favorito. Manejadas como se fossem parte de uma espécie singular de reality show, as imagens oferecidas ao telespectador não contiveram esforços para manejar a dor. Parte do sucesso dessa estratégia foi obtido na mesa de edição, onde não houve economia na utilização de recursos técnicos para eliminar os ruídos. Sem necessitar de truques de videogames ou da violência gratuita dos filmes de ação, os noticiários televisivos, abastecidos por farto material sangrento, tiveram o cuidado de limpar as imagens – essa ação cosmética manteve apenas os elementos necessários para que o espectador compreendesse a dimensão do drama, mas não fosse exposto às suas imagens mais brutais.

Em outras palavras, ao adotar a estética de blockbuster hollywoodiano, os noticiários, intermediados pela câmera, possibilitaram que o olhar incrédulo do espectador deslizasse pela tragédia até encontrar o lugar onde os sentidos e os sentimentos se encontram. O voyerismo é sócio da crueldade.

Há o choque dos aviões contra as torres, há os esforços de socorro às vítimas, mas (com exceção dos desesperados que se jogaram das torres em chamas) os mortos estão ausentes. Foi essa forma repleta de pudor deslocado, similar a um filme pornográfico soft, onde as imagens provocativas substituem as imagens reais, que a mídia estabeleceu um vínculo identitário com os espectadores. Aproveitando a ataraxia produzida nos estadunidenses, entrou em cena o oportunismo da cultura do espetáculo e a excitação produzida pela violência. Esse conjunto de fatores contribuiu para esvaziar a substância crítica que estava embutida na ação política. Misturada com os espectros que deslizam pelas sombras, a história política e militar estadunidense foi soterrada por toneladas de ideologia conservadora.

Desta forma, o espectador ficou impossibilitado de distinguir o que é mais agressivo: o atentado contra as torres do World Trade Center ou a sua transmissão. Como a audiência televisiva está intimamente relacionada com o implemento da escala de impacto e dramaticidade – e, conseqüentemente, com o fluxo de inserções comerciais –, discutir se havia algum impedimento ético para (não) transmitir o atentado contra as torres gêmeas do World Trade Center estava fora de questão. Na análise de Susan Willis, somente os ingênuos discordam que, na sociedade capitalista, "o real é produzido como espetáculo pelos meios de comunicação". Além disso, diante da possibilidade de transmitir uma notícia (principalmente se envolver algum tipo de desastre), seguindo a lição de entretenimento oferecida pela Roma antiga (abrir a jaula dos leões e assistir ao massacre), Jacques Wainberg nos lembra que "os veículos de comunicação são chamados a cumprir o papel de disseminador do pânico nas situações em que o terror tem de ser transferido aos lares e às mentes das pessoas".

No romance Homem em queda, de Don DeLillo, as imagens transmitidas pela televisão descrevem esse comportamento de modo exemplar:


“Toda vez que via um vídeo dos aviões ela colocava o dedo sobre o botão de desligar do controle remoto. Então continuava assistindo. O segundo avião saindo daquele céu de um azul gélido, era essa a cena que penetrava o corpo, que parecia correr por baixo da pele, o instante fugaz que transportou vidas e histórias, dos outros e dela, de todos, para algum lugar distante, muito além das torres.
Os céus que a sua memória retinha eram cenários dramáticos de nuvens e tempestades marítimas, ou então de lampejo elétrico antes do trovão no verão da cidade, sempre um complexo de energias puramente naturais, o que havia lá em cima, massas de ar, vapor d’água, ventos. Aquilo era diferente, um céu límpido que transportava o terror humano naqueles aviões súbitos, primeiro um, depois o outro, a força da intenção humana. Ele assistiu junto com ela. Cada desespero impotente destacado contra o céu, vozes humanas clamando a Deus, e como era terrível imaginar isso, o nome de Deus na boca tanto dos assassinos quanto das vítimas, primeiro um avião, depois o outro, aquele era quase uma figura humana de desenho animado, com olhos e dentes reluzentes, o segundo avião, a torre sul.
Ele assistiu com ela apenas uma vez. Ela se deu conta de que jamais se sentira tão próxima de outra pessoa, vendo os aviões riscar o céu. Parado junto à parede, ele estendeu o braço em direção à cadeira dela e segurou-lhe a mão. Ela mordeu o lábio e ficou assistindo. Todos morreriam, passageiros e tripulantes, milhares nas torres, e ela sentia no corpo uma pausa profunda, e pensou ele está lá, por incrível que pareça, numa dessas torres, e agora a mão dele sobre a dela, naquela luz fraca, como se para consolá-la pela morte dele.
Disse ele: “Ainda parece um acidente, o primeiro. Mesmo visto dessa distância toda, bem longe da coisa, sei lá quantos dias depois, eu estou parado aqui pensando que é um acidente”.
“Porque tem que ser.”
“Tem que ser”, disse ele.
“O jeito que a câmara meio que demonstra surpresa.”
“Mas só o primeiro.”
“Só o primeiro”, ela repetiu.
“O segundo avião, quando o segundo avião aparece”, disse ele, “todos nós já estamos um pouco mais velhos e mais escolados.”

O horror multiplicado nas imagens televisivas, o primeiro avião, o segundo avião, as explosões, as torres caindo, integra o imaginário humano como excessos de verdades. E isso possibilita que sentimentos de negação se imponham na vida cotidiana: assombrada pelo curto-circuito emocional, a personagem Cayce Pollard, do romance Reconhecimento de padrões, de William Gibson, suspeitando que o seu pai estivesse entre as vítimas do ataque terrorista, adota uma medida extrema:

“E então ela havia caminhado até a sua casa, o caminho inteiro, até sua caverna silenciosa com seus pisos pintados de azul, e jogara na lixeira o software que lhe permitira ver a CNN em seu computador. Ela não vira mais televisão desde então, e nunca, se pudesse evitar, o noticiário”.

Provavelmente, no que se convencionou chamar de vida real, muitos estadunidenses também adotaram esse tipo de comportamento.



4. A TAREFA LITERÁRIA

Para competir com as imagens televisivas, em primeiro instante, e com as imagens do cinema, logo a seguir, a literatura precisou fazer esforço extra. Como lembra Beatriz Jaguaribe, o “nosso acesso ao real e à realidade somente se processa por meio de representações, narrativas e imagens”. Para obter esse efeito, a literatura estadunidense passou a utilizar continuamente a descrição, que era algo raro nas narrativas estadunidenses. A idéia, sempre presente, de escrever um pré−roteiro cinematográfico, onde diálogos e cenas de ação se alternam, foi revista. Inclusive nas revistas. Poucos escritores conseguiram descrever o 11 de setembro sem se deter nas imagens que estão gravadas na memória coletiva. Afinal, andar em círculos é uma das formas perversas de retro−alimentar o ódio. Ao mesmo tempo, o caminho mais fácil para atingir a verossimilhança está no entranhamento entre a escritura e o leitor.

Trabalhando com um das metáforas que caracterizam a redenção, o homem que emerge das ruínas, o romance Homem em queda, de Don DeLillo, procura acrescentar elementos que as imagens transmitidas pela televisão, por diversos motivos, soterraram nos destroços do World Trade Center:

"Era assim por toda parte ao seu redor, um carro meio submerso em escombros, janelas despedaçadas e ruídos saindo delas, vozes radiofônicas arranhando os destroços. Ele via pessoas correndo com água escorrendo delas, roupas e corpos encharcados por sprinklers. Havia sapatos abandonados na rua, bolsas e laptops, um homem sentado na calçada tossindo sangue. Copos de papel desciam a rua quicando, uma visão estranha.
O mundo era isto também, vultos em janelas a trezentos metros de altura, caindo no espaço vazio, e o fedor de combustível pegando fogo, e o grito constante das sirenes no ar. O barulho estava em todos os lugares para onde eles corriam, sons estratificados a se acumularem a seu redor, e ele ao mesmo tempo se afastava e mergulhava no barulho.
Então apareceu uma outra coisa, fora de tudo isso, sem fazer parte disso, no alto. Ele a viu descendo. Uma camisa descia da fumaça lá em cima, uma camisa subia e planava na luz escassa e depois voltava a cair, em direção ao rio.
Eles corriam e então paravam, alguns, e ficavam a oscilar, tentando respirar o ar escaldante, e aqui e ali exclamações de espanto, xingamentos e gritos perdidos, e a nuvem de papeis no ar, contratos, currículos passando, fragmentos intactos de transações comerciais voando no vento."

Coberto de poeira, cinzas e sangue, as roupas rasgadas, sujas de lama, pequenos estilhaços de vidro espalhando a dor pelo corpo, o personagem Keith Neudecker, um homem apanhado de surpresa pelo destino, "ouviu o ruído da segunda queda, ou sentiu-o no ar trêmulo, a torre norte desabando, o som suave de vozes abismadas ao longe. Era ele caindo, a torre norte". Desamparado (como se fosse um pára-quedista que mergulhou do alto das torres gêmeas e conseguiu pousar no meio dos destroços do edifício que se despedaçava enquanto ele estava planando), Keith sente que o seu corpo está contaminado pela morte. Então, movido por algo além de suas próprias forças, decide voltar para casa. Não para o lugar onde ele reside. Para aquele apartamento, no último andar de um prédio de tijolos vermelhos, onde viveu com a ex-esposa, Lianne, e o filho, Justin. Como se fosse alguma reinterpretação contemporânea do mito do filho pródigo, Keith procura por abrigo no território de confronto familiar. Sem avaliar se ainda lhe restava alguma coisa para perder, espécie tardia (fora de moda) do herói desamparado, ele assume uma posição ativa diante dos obstáculos emocionais: a reconstrução inicia nas ruínas.

Embora se refiram às mesmas ruínas, as imagens dos aviões se chocando contra as torres gêmeas anunciam outro tipo de tragédia, como lembra o personagem de Don DeLillo: "(...) toda vez que entrava no avião olhava para os rostos dos dois lados do corredor, tentando identificar o homem ou os homens que poderiam representar um perigo para todos". Depois da porta arrombada, a suspeita se instala, o inimigo surge em cada esquina, angústias desmembradas do corpo, intimidando, aterrorizando.

Para a comunidade muçulmana que vive em Londres, e que − mesmo antes do 11 de setembro − é vítima diária do preconceito e da discriminação, as imagens televisivas anunciaram outras ruínas, como tenta comprovar uma cena do romance Um lugar chamado Brick Lane, escrito pela inglesa, nascida em Bangladesh, Mônica Ali:

"– Rápido! Rápido! – ele grita –. Ligue a televisão.
Ele anda pela sala procurando o controle remoto, passando várias vezes pela televisão. Finalmente, ele aperta o botão que fica abaixo da tela – Meu Deus – ele diz. – O mundo enlouqueceu.
Nazneen olha para a tela. A televisão mostra um edifício alto contra um céu azul. Ela olha para o marido.
– Este é o começo da loucura – diz Chanu. Ele segura sua barriga como se estivesse com medo de que alguém pudesse roubá-la.
– Nazneen chega mais perto. Uma coluna grossa de fumaça preta está parada do lado de fora da torre. Ela parece pesada demais para estar ali parada. Um avião vem em câmera lenta do canto da tela. Ele parece estar voando no nível dos prédios. Nazneen acha melhor continuar trabalhando.
– Ó Deus – Chanu grita.
Nazneen se senta no sofá, com a mão na mancha brilhante onde o óleo do cabelo de Chanu se entranhou no tecido. A cena passa de novo. Chanu fica de cócoras com a barriga entre os joelhos e os braços em volta deles. A televisão o escravizou. Ele se balança num estado de excitação nervosa.
O avião está vindo de novo. A televisão mostra a mesma cena várias vezes.
Nazneen se inclina para a frente, tentando entender. Ela chega o corpo para a ponta do sofá. As palavras e frases se repetem e ela começa a compreendê-las. Chanu cobre o rosto com as mãos e olha por entre os dedos. Nazneen percebe que se inclinou tanto que está dobrada ao meio. Ela endireita o corpo. Ela pensa ter compreendido, mas pensa que pode estar enganada.
A cena muda. – O Pentágono – diz Chanu. – Você sabe o que é isso? É o Pentágono.
O avião chega e torna a chegar. Nazneen e Chanu ficam enfeitiçados por ele.
Agora eles vêem fumaça: uma coluna de fumaça, caindo. Nazneen e Chanu se levantam. Eles ficam em pé enquanto assistem uma segunda, uma terceira vez. A imagem é ao mesmo tempo hipnotizante e impenetrável; quanto mais é repetida, mais se torna obscura até que Nazneen sente que precisa sair daquele transe. Chanu mexe com os ombros, estende os braços e faz círculos com eles. Ele sopra com força. Não diz nada."

Diante do inominável, as palavras se mostram insuficientes. Apesar disso, um personagem secundário de Homem em queda elabora uma síntese macabra para os acontecimentos do 11 de setembro: "Cinzas e ossos. É o que resta dos planos de Deus".

Caminhando nessa mesma direção pessimista, o enredo do romance Windows on the World, do francês Frédéric Beigbeder, descreve a história do homem que leva os dois filhos do primeiro casamento (Jerry e David) para o “breakfast” no complexo de restaurantes Janelas para o mundo, localizado nos andares 106 e 107 da North Tower do World Trade Center.

Enquanto seus personagens encenam o horror que é encarar a morte, através de um ângulo particularmente agressivo, Beigbeder, um adepto do hiperrealismo, faz uma aposta bastante arriscada – o real de sua narrativa almeja ser maior (ou mais intenso) do que o real produzido pela História. Em outras palavras, Beigbeder preferiu ignorar que a ficção é, no máximo, representação do real – jamais será “o” real.

"Vocês conhecem o final: morre todo mundo. Claro, a morte acontece a um bocado de gente, cedo ou tarde. A originalidade desta história é que todos vão morrer ao mesmo tempo e no mesmo lugar. (...)
Daqui a um instante, no Windows on the World, uma roliça porto-riquenha vai começar a gritar. Um executivo de terno e gravata ficará boquiaberto. “Oh my God!” Dois colegas de escritório emudecerão de assombro. Um ruivo irá vociferar um “Holy shit!” A garçonete continuará a servir seu chá até a xícara transbordar. Há segundos que duram mais do que outros. Como se tivéssemos acabado de apertar a tecla “Pause” de um aparelho de DVD. Daqui a um instante, o tempo se tornará elástico. Todas essas pessoas finalmente irão se conhecer. Daqui a um instante, serão todos cavalheiros do Apocalipse, todos unidos no Fim do Mundo."

Com uma linguagem que flerta com o humor negro, e que se realimenta na repetição, o horror é descrito sem anestésicos, sem metáforas alienantes, inclusive porque, se “há segundos que duram mais do que outros”, parte da tarefa literária está no manipular desse tempo “congelado”.



5. HENRY PEROWNE E O INCÔMODO MIMÉTICO

A situação vivida por Henry Perowne, personagem do romance inglês Sábado (Ian McEwan, 2005), ciente de que, nas palavras de Slavoj Žižek, "a verdadeira catástrofe já é esta vida sob a sombra da ameaça permanente de uma catástrofe", reflete um sentimento que se tornou comum a todos aqueles que são herdeiros do 11 de setembro: perda da estabilidade política e psicológica.

Henry está em Londres, na janela de seu quarto, no início da manhã de 15 de fevereiro de 2003. Ao voltar para a cama, ouve um barulho ensurdecedor. "Olha para trás, sobre o ombro, na direção da janela, para confirmar". Vê uma bola de fogo no céu. Imagina que é um cometa. Estava enganado. Era um avião em chamas. Ao perceber que as certezas de Perowne estão se dissolvendo na angústia, o narrador remete a um grau de assombro desconhecido em outras épocas da humanidade: "A catástrofe observada de uma distância segura. Assistir à morte em larga escala, mas não ver ninguém morrer. Nenhum sangue, nenhum grito, nenhuma figura humana".


6. O QUE RESTOU

Dez anos depois do seqüestro das quatro aeronaves e da destruição das torres gêmeas do World Trade Center ainda é cedo para resumir os acontecimentos derivados do 11 de setembro. O espetáculo midiático do choque dos dois aviões contra as torres consegue, ainda hoje, apagar diversas questões.

A primeira delas, e que precisa ser lembrada diariamente, é que foram quatro os aviões seqüestrados. Quatro. Mas, há imagens de apenas dois. Como lembra Susan Sontag, "esse truque de ilusionista permite que as fotos sejam um registro objetivo e também um testemunho pessoal, tanto uma cópia ou uma transcrição fiel de um momento da realidade como uma interpretação dessa realidade". Entre as fotos e os vídeos conhecidos há interstícios que, por diversos motivos, não são considerados. Em um mundo onde a estética da vitimização se impõe, a memória não retém as mortes que não são documentadas.

Com a atribuição de culpa pelos ataques do 11 de setembro à comunidade muçulmana, restabeleceu−se o conceito de bipolaridade que havia desaparecido com a queda do Muro de Berlim. Mas com diferenças fundamentais. Fundamentalistas, para ser mais exato. Enquanto, nos anos 50, 60 e 70 do século passado, União Soviética e Estados Unidos competiam pela hegemonia ideológica, o que a nova guerra fria está nos mostrando é sintomaticamente diferente: de um lado, o Ocidente, a civilização, o progresso, o futuro, nós; do outro, o Oriente, a barbárie, o retrocesso, o passado, eles. Na luta entre adversários visivelmente desemparelhados, os interesses econômicos determinam os valores que regem essa dicotomia.

O 11 de setembro não é apenas o 11 de setembro. É muito mais. Como é de conhecimento de quem estuda História, figuras como Osama Bin Laden e Sadam Hussein não aparecem no horizonte político como exceção. Eles são a regra. E muitos são financiados pelo governo estadunidense. Enquanto são úteis, recebem dinheiro, armamento, treinamento e proteção. No momento em que ocorre mudança de objetivos, são transformados em criminosos. A política externa de Estados Unidos não é, e nunca foi, ética.

A invasão do Afeganistão, um país completamente insignificante, sem nenhuma infra−estrutura (a guerra com os russos alguns anos antes havia devastado o pais), não foi um ato de vingança contra o 11 de setembro: a luta por petróleo (e a expansão de um oleoduto russo) é um detalhe mais importante do que a morte de uma meia dúzia de soldados que moram em cavernas.

A alegação de que o Iraque estava fabricando armas de destruição em massa justificou a morte de centenas de milhares de civis. A nova frente de batalha do exército estadunidense foi um pretexto para se livrar de um ex−amigo que estava se tornando inconveniente. A moeda mais importante da modernidade não é o ouro, o euro ou o dólar, é o petróleo. Ao contrário da família real saudita, que se mostra dócil e submissa, Sadam Hussein tinha se tornando independente. E isso estava se tornando intolerável. Sadam Hussein precisava ser punido. Seguindo o raciocínio econômico, não há melhor maneira de ganhar dinheiro do que destruir um país, para, logo em seguida, reconstruí−lo. A maior potência militar do planeta também é a nação mais gananciosa.

Excrescências jurídicas como Guantánamo, o julgamento de Sadam Hussein no Iraque (deveria ser julgado pelo Tribunal Internacional, em Haia) e o assassinato de Osama Bin Laden colocam em dúvida o conceito de barbárie. Ou melhor, sobre quem são os bárbaros. O horror protagonizado na prisão de Abu Ghraib será lembrado como um dos mais significativos crimes de guerra da humanidade. E que, até o momento, está impune.

A tarefa da literatura é denunciar todas essas aberrações, todos esses crimes. E que, de uma forma ou de outra, esta sendo executada.



7. EPÍLOGO

Como todo e qualquer contato humano deixa um rastro de sangue, tudo o que se escreveu (ficção, depoimento, análise) a respeito do 11 de setembro, apesar de não revelar “a luminosidade de um amanhecer depois de uma vida inteira passada no escuro”, (como propõe o narrador de Um lugar chamado Brick Lane, de Mônica Ali), estabelece as bases para doloroso passeio sentimental entre os escombros que constituem aquilo que, em tempos remotos, foi chamado de civilização (metáfora apocalíptica levada às últimas conseqüências por Cormac McCarthy no romance A estrada).

Depois do 11 de setembro, o mundo ficou mais triste, mais paranóico, mais preconceituoso, menos humano.

Ao fundo, como se integrasse a trilha sonora que une corações e mentes com o som dos dois aviões se chocando contra as torres gêmeas, há o desespero daqueles que não conseguem esquecer os versos que a voz de Billie Joe Armstrong transformou em profecia: “Summer has come and passed / The innocent can never last / Wake me up when september ends”. ("O verão chegou e foi embora / O inocente nunca fica para trás / Acorde-me quando setembro acabar").



8. BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ALI, Mônica. Um lugar chamado Brick Lane. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
ARMSTRONG, Billie Joe; PRITCHARD, Michael; WRIGHT, Frank E. (Lyric composers). Wake me up when september ends. Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KjNJmwwf7QA. [Acesso em 05. mai. 2010].
AUSTER, Paul. O homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.
BEIGBEDER, Frédéric. Windows on the world. Rio de Janeiro: Record, 2005.
CONRAD, Joseph. O coração das trevas. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DeLILLO, Don. O homem em queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GOUREVITCH, Philip; MORRIS, Errol. Procedimento operacional padrão: uma história de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
KAZ, Roberto. Autor sobrepõe beleza à tragédia. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 Jun. 2010. Ilustrada. p. E9.
McCARTHY, Cormac. A estrada. Rio de Janeiro, Objetiva/Alfaguara, 2007.
McEWAN, Ian. Sábado. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
OATES, Joyce Carol. The mutants. Disponível em: http://toterbaum.blogspot.com/2005/03/mutants­by­joyce­carol­oates.html. [Acesso em 04 jan. 2011].
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
UPDIKE, John. O terrorista. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem−vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.
WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror: comunicação e violência política. São Paulo: Paulus, 2005.
WILLIS, Susan. Evidências do real: os Estados Unidos pós−11 de setembro. São Paulo: Boitempo, 2008.
WRIGHT, Lawrence. O vulto das torres: a Al-Qaeda e o caminho até o 11/9. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


(LAGES, SC, 12 de setembro de 2011. FACVEST)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

DOM CASMURRO E A MODERNIDADE - O DISCURSO DO CORNO



Todas as histórias de amor terminam mal. Essa é a principal lição que o Realismo ensinou aos românticos. O idílio amoroso de nove entre dez estrelas de cinema, digo, de nove entre dez casais de namorados, aquele que termina com a frase mais ridícula que a literatura costuma usar nessas ocasiões, "e eles foram felizes para sempre", é clássico auto−engano, sonho de que a felicidade está ao alcance de qualquer um. No imaginário social, a felicidade é presente divino, basta abrir os olhos e colher flores no jardim da vida. Assim, na boa, sem custos, sem encargos, sem a luta diária que compõe as negociações de um relacionamento afetivo. Em lugar disso, em lugar desse desgaste, quem está apaixonado costuma despejar milhares de "eu te amo" sobre os ouvidos das vítimas, também conhecidas como trouxas−de−plantão. Muitas vezes essas promessas de bem−querer são pronunciadas em voz alta, esquecendo que, se o amor é cego, os vizinhos não são surdos. Em outras palavras, é com profundo pesar que a literatura comunica a quem de direito, e algum interesse possa ter, que a vida a dois é o formidável enterro da última quimera, como dizia o poeta. E esse é um ponto pacífico na questão. Perdão, houve um equívoco. Pacífico é o oceano, a vida amorosa é guerra − em cima ou embaixo dos lençóis, antes ou depois dos gemidos de dor e prazer. Basta lembrar que algumas das mais famosas histórias amorosas, Romeu e Julieta ou Páris e Helena (os causadores da guerra de Tróia), por exemplo, não tiveram happy end. Isto é, tiveram a punição clássica para quem vive caminhando nas nuvens, esquecendo que as estradas são esburacadas. Na "vida real", basta o menor descuido e... Catabum! Além da perna quebrada, imenso hematoma no ego. E, no caso específico do hematoma, a história não melhora com pinceladas de mertiolate, assopros carinhosos e alguma observação trivial, "Quando casar sara", porque não vai haver casamento, e se houver, se houver não há de cumprir com objetivo a que se propõe, basta lembrar que no meio de qualquer briga sempre existe o risco de iniciar algum campeonato de arremesso de louça na cabeça do Outro, e isso posto não mais será possível viver contemplando o remendo, a visão da fratura é agônica, insuportavelmente dolorida. 
   


Joaquim Maria Machado de Assis (1839 − 1908) também tinha esse entendimento. Influenciado em boa medida pelo realismo nu e cru de Gustave Flaubert e Eça de Queirós (que ele, Machado, dizia não gostar), também quis ele, Machado, contar uma história das pancadas que sofre um coração amoroso. Como sugere Walter Benjamim, contar histórias sempre foi a arte de contá−las de novo. Naquela época, deitar com mulher casada, mais do que freqüentar prostitutas, era uma tara, perdão, mais uma vez escrevi a palavra errada, quis dizer tema, isso mesmo, um tema bastante freqüente na literatura daquela época, exemplos não faltam, O Primo Basílio e Os Maias, do Eça de Queirós, Madame Bovary, do Gustave Flaubert. Seguindo esse fluxo, a Machado também coube meter alguns ornamentos na cabeça do protagonista de sua narrativa, embora de maneira particular, puxando a brasa para sua sardinha, mostrando que o ciúme é a mola−mestra do equívoco, do transformar a paixão amorosa em pose e posse, objeto e obsessão. Silenciosamente, como se tivesse patas de gato, o ciúme é prova de competência na arte de estragar essa refeição que chamam de casamento, esquecendo que qualquer alimento só se torna palatável se for condimentado com sal, ervas finas e azeite de boa qualidade.  No entanto, antes que o leitor se engasgue com iguarias que não foram feitas para o seu paladar, posto que piloto de má sorte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo, urge estabelecer algumas definições conceituais. Tomo como guia o Zuenir Ventura, que ensina o básico: Aos que pretendem empreender essa viagem, o autor pede que levem consigo, para o caso de se perderem, três distinções básicas: ciúmes é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é não querer que o outro tenha.    


Dom Casmurro, romance manjado, publicado em 1899, desses que parecem ter como finalidade somente o atormentar estudantes do segundo grau e vestibulandos, é um ensaio anatômico sobre o ciúme. Machado de Assis não teve medo de enfiar na mão o bisturi e com ele abrir incisões no corpo do amor. A história narrada em primeira pessoa por Bento Santiago abrange quarenta anos. Inicia quando o narrador−personagem tinha quinze e o termina aos cinqüenta e cinco. O homem que recebeu dos desafetos a alcunha de Dom Casmurro é um ressentido, mas possui algum humor. A palavra casmurro caracteriza interessante auto−ironia, pois se de um lado significa alguém de maus bofes, sem humor, intratável, também pode ser entendida como calado, de pouca conversa, teimoso e obstinado. O título Dom estabelece um elemento de importância, um patamar superior, a diferença aflorando entre aqueles que deveriam ser iguais. Pois é, Dom Casmurro. Ou, de acordo com o desenrolar desta história, Bentinho, intimidades com o narrador, pois que ele mesmo não esconde esse diminutivo no trato geral do texto. Pois então que fique bem claro o básico: a história se desenvolve em torno dos desencontros entre namoradinhos e que, ao vago deslocar da areia na ampulheta, resulta em Bentinho pra cá, Escobar pra lá, Capitu no meio, o velho e tempestuoso triângulo amoroso.


Mas, antes que a confusão se estabeleça, cabe estabelecer ordem no enredo. Por trapaças da sorte, depois de se descobrir apaixonado por Capitolina Pádua, a Capitu, Bentinho não pode saborear mais do que alguns poucos roçar de lábios, visto que acabou condenado a ferros em seminário, paga de promessa feita por sua mãe quando nasceu. Lá conheceu Ezequiel de Sousa Escobar, um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo, que, embora fosse cerca de três anos mais velho que Bento, acabou por tornar−se o seu companheiro de todas as horas. Os bons e maus momentos foram compartilhados em perfeita comunhão. Apesar das poucas informações fornecidas pelo personagem−narrador (No seminário... Ah! Não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso um capítulo. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto), há que se supor que não foram desabonadores os episódios que os uniram no seminário. Tanto que emergiram do purgatório, digo, respiraram o ar da liberdade ungidos com os santos óleos da teologia, conforme o pedantismo acaciano de José Dias. Enquanto ambos os dous, Bento e Escobar, estavam cumprindo pena no seminário, Capitu, pretextando cuidar de D. Glória, a mãe de Bentinho, que estava acamada, foi se acercando da enferma, criando intimidades, se fazendo necessária. E, obviamente, criando laços afetivos.   


Mais tempo passou, inclusive cerca de dois terços do romance, algumas histórias relatadas nessas cenas parecem ser do gênero "encher lingüiça", como se pode ver pelos casos do Panegírico de Santa Mônica, soneto e o enterro do Manduca. É uma lengalenga que parece não ter fim, recheada de divagações, citações bíblicas, causos mitológicos, anedotas sociais. Aos 16 anos, Bento e Escobar deixaram as portas do seminário para trás. Bento foi cursar leis, e aos 22 anos era Bacharel em Direito; Escobar, nessa época contando 25 anos, estava a negociar café e havia casado com Sacha, amiga de infância e de escola de Capitu.     


O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra−regras, isto é, designa a entrada das personagens em cena, dá−lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao dialogo, uma trovoada, um carro, um tiro, não se constrange de proclamar o narrador. E tudo isso se refere ao elementar. Enquanto algumas personagens desaparecem de cena, Bentinho e Capitu contraem núpcias. Nos dramas românticos, aqui caberia a frase "e foram felizes para sempre", frase que anestesia todas as miudezas que compõem um matrimônio, frase que sufoca o olhar assassino causado por tolha molhada deixada em cima da cama, pelo não levantar a tábua do vaso sanitário na hora do expelir um dos fluídos corporais. Obviamente, a narrativa não se detém nessas miudezas. O que afligia o dileto casal era a falta de herdeiro. Dois anos de união e nada. Há que se imaginar que o casal tenha suado no esforço de remediar essa carência. O texto é muito pudico em contar esses detalhes de cama, mesa e banho, mas para bom entendedor meia palavra basta. Escobar e Sancha, por sua vez, tinham uma filha. Alem disso, Escobar, ao que parece, também era vezeiro em aventuras extra−conjugais – não deu escândalo, comenta o narrador.


Eis que nasce, finalmente, o filho.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê−la; nunca a tive igual, nem creio que a possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não afligir Capitu convalescente.

O retrato da felicidade. Recebeu o pimpolho o nome de Ezequiel, homenagem ao amigo dileto. E o menino cresceu rápido, brincando de soldado, fazendo arruaças, alegrando o coração dos pais.      


Escobar, o amigo, com o passar dos anos, progrediu. Comprou casa nova, mais próxima do lugar onde moravam Bento e Capitu. Os amigos se tornam pródigos em visitas e refeições. Como estava escrito nas estrelas, um dia tudo acaba. E o princípio do fim se deu quando Escobar foi ao mar. Voltou cadáver. Afogado. No momento em que a alma do falecido estava sendo encomendada, Bentinho consegue perceber o que até então lhe era invisível:

Sancha quis despedir−se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer−se a si mesma.  Consolava a outra, queria arrancá−la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela. Capitu enxugou−as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá−la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem as palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.

Aquele enterro enterrou a ingenuidade. Bento tomado por sentimentos confusos e de difícil diagnóstico, entrou em transe. É verdade que fez discurso à tumba daquele que por muitos anos lhe foi o irmão que a família não lhe deu, mas também é verdade que foi ato maquinal, sem grandes arrufos, como se, em lugar das letras escritas no papel, estivesse a rever os fatos idos e vividos, como se algo o estivesse a corroer internamente, a certeza de que não era o amigo que estava sendo baixado à tumba, mas o comborço.


E isso se tornou mais intenso, como se fosse algo que até então estava submerso e finalmente veio à tona, quando começou a reparar em Ezequiel. Parecia−lhe ver, principalmente nos olhos do filho, as feições do amigo morto. Como o menino já tivesse idade para tanto, meteram−no em colégio interno, só voltava para casa nos finais de semana.

Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta do Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e amor, porque o demo do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

Mal secreto. Dentro das palavras, veneno. E que foi sendo administrado homeopaticamente em Ezequiel. A relação pai e filho estava de malas prontas para o rompimento definitivo. Aos olhos pecaminosos de Bento, o menino era prova irrefutável de que as relações amorosas eram uma fraude. Fraude que envolvia o pai, a mãe, o filho, o casamento, a amizade – todos os valores sociais estavam diante do tribunal e as provas fornecidas pela acusação eram robustas, contundentes, irrefutáveis. Pensou Bento em suicídio, tanto que comprou em uma farmácia determinada substância. Não a tomou. Em vez disso, foi ao teatro. Estavam representando Otelo. A cena do lenço corroeu suas entranhas. Passou a noite a vagar pelas ruas do Rio de Janeiro, a vida sendo exposta pelo ciúme, pela dor.


Na manhã, embriagado por maus sentimentos, renega o filho. Em voz alta, enquanto abraça Ezequiel, como se fora juiz em processo de paternidade, pronuncia a sentença: Não, não, eu não sou teu pai! Capitu, que estava próxima, ficou lívida. Seguem−se os pedidos de explicação adequados a esse momento dramático.  Não os há. O que há é a ruptura. Acabou o casamento.

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: − Mamãe! Mamãe! É hora da missa! − restituiu−me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez−se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porem, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou o filho e saíram para a missa.

Eis a peça jurídica. Nada mais havia a tratar. O advogado havia vencido o marido. A pena foi cumprida de maneira educada: foram todos à Europa. Algum tempo depois, Bento retorna. Sozinho.

Como convém a execução de ópera, o espetáculo não termina antes da mulher gorda cantar. É a praxe, é a coda. Mortos todos os que trafegavam ao redor, eis que um dia, muitos anos depois, recebe Bento visita.

Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cautelosamente, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu−me passos, e voltou−se depressa. conheceu−me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço, era o filho de seu pai.

Almoçaram, trocaram informações, estabeleceram pequenas intimidades. Seis meses depois, Ezequiel viajou, em aventuras arqueológicas. Morreu de febre tifóide em Jerusalém. Ao receber a notícia, Bento faz uma confissão: Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.


E assim, dessa maneira asséptica, sem grandes violências físicas, termina o romance. Para leitores mais contemporâneos, faltam cenas de sangue, faltam as cenas que freqüentam as manchetes dos piores jornais, aqueles jornais que todos olhamos de relance, assim como quem não quer nada e fica bem contente ao descobrir algum podre de algum conhecido. Não que se queira o mal do próximo, mas é uma delícia descobrir que fulano entrou pelo cano. Umas doses de Schadenfreude não fazem mal a ninguém, muito pelo contrário, aliviam as dores, permitem sorrisos de satisfação, a sensação de que a injustiça diminui.


Mas, há um engano em tudo isso, as idéias estão fora do lugar, como nos alertou Roberto Schwarz. Se há falta de sangue, sobra violência. Uma violência silenciosa, que causa mais estragos que pancadas. A alegação é de que, ao marido, cabe a prerrogativa de lavar a honra. Capitolina capitulou em exílio perpetuo – apesar de nunca haver confessado a falta que lhe foi imputada. Educado pelas regras do catolicismo inquisitório, Bentinho impõe os rituais da pantomima, o comportamento do marido enganado, o visível desconsolo de quem confiou e foi traído. Em nenhum momento admite que Nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias brevíssimas. Basta−lhe ver o filho para ser tomado por sentimento nefasto, por vontades de cometer atos impróprios por alguém civilizado.


A crítica literária brasileira e internacional ainda não emitiu juízo de valor sobre Dom Casmurro. Falta um ensaio definitivo. Os "verdadeiros" machadianos preferem estudar o Quincas Borba ou o Brás Cubas, que são textos escritos com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. De qualquer maneira, cabe destacar que a fortuna critica de Dom Casmurro aumentou muito nos últimos anos. Ao lado dos escritos de Augusto Meyer e Lucia Miguel Pereira, surgiram varias teses interpretativas do romance. Em alguns desses estudos, prevalecem as perguntas clássicas sobre a suposta traição de Capitu. Traiu? Foi imaginação de Bento? Ezequiel parecia−se com Escobar? 


Mudou o rumo da conversa, o ensaio escrito por Helen Caldwell, (O Otelo brasileiro de Machado de Assis) que fez interessante comparação com Otelo, de Shakespeare. Bento, vítima de ciúme doentio, cria ao seu redor uma rede de conspiração que inexiste. O rosto de Ezequiel tem o mesmo valor de peça acusatório que o lenço teve para o Mouro de Veneza. Nos dias de hoje dir−se−ia que tratava de prova circunstancial, naqueles tempos era a condenação.
   

Outra guinada mais radical foi proposta por John Gledson (Por um novo Machado de Assis), quando insinua que, ao ver a semelhança de Ezequiel com Escobar, Bento percebeu que havia sido traído – mas não por Capitu. Por Escobar. A sua frustração não se dá pela esposa ter compartilhado cama com Escobar, mas sim por Escobar, o amigo dileto, ter trocado suores e humores com Capitu. Sentiu−se excluído. Talvez saudades do tempo de seminário. Não sei. A suspeita, assim como a traição de Capitu, é difícil de provar.

De qualquer maneira, diante do ponto básico, se houve ou não traição, o que predomina é o depoimento de Bento. É o relato unilateral do marido que se imagina enganado - e que não permite o contraditório. Em momento algum Capitu consegue se fazer ouvir. Diante da acusação, cala. Ou é amordaçada. À Capitu falta voz.

Bibliografia básica

BENJAMIN, Walter. O narrador (considerações sobre a obra de Nikolai Leskov) In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas (magia e técnica, arte e política). São Paulo: Brasiliense, 1985. v.1.  
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Cotia: Ateliê, 2002.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
__________. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 4. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades,  1992.
__________. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VENTURA, Zuenir. Mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.


(Texto escrito especialmente para FACVEST (LAGES, SC) e apresentado em 19 de agosto de 2011)