sexta-feira, 25 de março de 2011

PORNOGRAFIA, EROTISMO E OUTRAS SACANAGENS (bisbilhotando a sexualidade feminina na literatura brasileira do século XXI)

A literatura (e a vida, em geral) encontra um significativo impasse nas distinções básicas entre pornografia, erotismo e narrativas com conteúdo sexual. Embora essas classificações sejam fluídas (muitas vezes dependentes do sistema ideológico e cultural dominante e/ou de observações subjetivas – o que significa algum tipo de vínculo com as distorções produzidas pela história pessoal de cada leitor), surpreende constatar que a ignorância supera o esclarecimento.

Luisa Coelho, no prefácio que escreveu para o livro “Intimidades”, que reúne contos de cinco portuguesas e cinco brasileiras, adota critérios clássicos para definir pornografia e erotismo: “O discurso pornográfico é aquele que torna o ato sexual transparente, revelando aquilo que na sexualidade do dia-a-dia é invisível, numa estética hiper-realista, onde as cenas descritas são mais reais que o próprio real (acumulando uma grande quantidade de sinais que acabam por afastar a realidade), e em que o sexo surge sem relação com o sujeito, sem intimidade e sem alteridade”.

Defendendo que o discurso erótico faz “uma representação verbal mais completa de Eros, com todos os seus componentes, e não apenas como uma exploração grosseira e gratuita da libido”, Luisa Lobo mostra que existe uma preocupação literária crescente para que o olhar feminino remova parte da camada de pó que está assentada sobre a literatura. Ao promover um novo foco de análise, uma maneira menos óbvia de compreender e expressar as emoções, o feminino, além de libertar a literatura de algumas de suas amarras mais fortes, coloca em xeque uma questão cultural não resolvida: os homens acreditam, inclusive por razões históricas, ter o poder de expressar qualquer opinião sem criar escândalos, além de insistirem, de forma veemente, que a pornografia e o erotismo estão adstritos ao território masculino – e isso significa que ficam “constrangidos” quando a voz com carga libidinal mais intensa é a feminina. Seja por uma questão de disputa de poder, seja por inveja (da vagina ou do poder da palavra?), o masculino sucumbe ao velho fantasma fascista e não mede esforços para sublimar as vozes menos pudicas através de rótulos expressivos, pejorativos, pouco amistosos.

Ainda no plano teórico, uma das melhores distinções sobre o tema foi publicada, nos anos 80, na revista “Primeiro toque”, da Editora Brasiliense: “erótico é tudo que excita; pornográfico é tudo o que assusta”. Entre o que assusta e o que excita corre um filete muito tênue (como comprovam as narrativas góticas e os filmes de terror), mas a vida é assim mesmo, um pouco estranha, quase contraditória, muito confusa, agradavelmente complicada.

De qualquer forma, como um adendo a este tipo de pensamento, cabe lembrar que as narrativas rotuladas como pornográficas, obscenas, licenciosas, fesceninas e eróticas estão proibidas de freqüentar as “altas literaturas”. Com as famosas exceções de sempre (Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de uns dois ou três outros pornógrafos eméritos), a tendência geral é a de se considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não-verbais de caráter sexual.

A literatura brasileira, encharcada pela água e o vinho do catolicismo, também prima pela adoção desse sistema de valores. E isso, muitas vezes resulta em grandes contradições, em equívocos lamentáveis e em gargalhadas muito saborosas. Uma situação muito interessante está no fato de que, atualmente, não existe mais espaço para “marchas por deus, pela pátria e pela família”, onde eram exorcizados os demônios mais perigosos, mais tentadores. Em lugar desses rituais públicos de contrição e fervor espiritual, a modernidade adotou como mascotes, uma quantidade assustadora de aprendizes de pastores evangélicos, que, em maior ou menor grau, sempre estão dispostos a proclamar que a pornografia é o equivalente ao fim dos tempos.

Sem entrar no mérito de quem considera os “catecismos” do Carlos Zéfiro uma representação de Sodoma e Gomorra, sem esquecer que algumas mulheres sempre escreveram sobre o erotismo (ver, entre tantos, “A casa da paixão”, de Nélida Piñon, ou “Sudário”, de Guiomar de Grammont), não é possível ignorar que esse tipo de interpretação possibilita o surgimento de uma “sacanagem” muito divertida: o rótulo “pornografia” como um trampolim para (in)certas “celebridades instantâneas”. Um exemplo clássico, na linha escândalo moderado, imitação barata de “Na cama com Madonna”, foi protagonizado pela cantora Syang (quem?), que publicou, em 2003, “No cio”, um livro de contos eróticos. Apesar do título provocativo e da cara-de-pau, a moça não teve o reconhecimento público que sonhava. E isso ocorreu, provavelmente, por um pequeno detalhe: Syang escreve muito mal.

Em oposição, o livro/depoimento “O doce veneno do escorpião”, “escrito” por Bruna Surfistinha, pode ser considerado um best-seller – e, para espanto geral, a sua versão cinematográfica não será um pornô hard-core, mas um filméco “família”! Elaborada inicialmente em um blog da Internet, a narrativa contou com a ajuda de um jornalista, que a transformou em livro. E o livro se transformou em sucesso comercial. Com uma linguagem acessível aos fãs do sexo manual, a ex-garota-de-programas alterna descrições gráficas bastante verossímeis de sua vida pessoal e profissional. Sem alimentar a ilusão de que, ao final de cada noite, vai encontrar o príncipe encantado e ciente de que caiu na “maioria das armadilhas do mundo”, Bruna não quis escrever um manual sobre o aprendizado sexual ou qualquer coisa do gênero (embora cometa o pecado de dar algumas dicas). Sabe que uma história de vida vale pelo que apresenta e não pelo que ambiciona representar. No teatro que constituí o mundo “real”, poucos têm talento para representar o mundo real.

De qualquer maneira, com centenas de problemas de estrutura, inclusive o infindável número de lugares-comuns, há algo de bom no livro de Bruna Surfistinha: sem se deter em análises sociológicas ou puritanas (apesar de, em um recurso que beira a ingenuidade mais medíocre, nomear as áreas sexuais apenas com a letra inicial da palavra, seguida de reticências), descreve a falta de glamour do mundo da prostituição. Simultaneamente, reafirma em diversos momentos que a existência humana precisa estar sintonizada com a diversão e o prazer. Esse movimento de adensamento entre a experiência concreta e a negação da ilusão romântica é o que faz de “O doce veneno do escorpião” um livro interessante. Ruim, mas interessante.

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As narrativas ficcionais femininas que, de uma forma ou de outra, descrevem um pouco da vida sexual das mulheres estão se multiplicando, algumas assim assim, outras um pouco piores. Exemplos não faltam: “Meus queridos cavalheiros” (Sonia Manski), “Amadora” (Ana Ferreira) e “A dama da solidão” (Paula Parisot) são boas leituras sobre o assunto. Mas, sem negar a qualidade de outras narrativas, duas merecem ser destacadas em separado. Em “A vida sexual da mulher feia” (Claudia Tajes), o poder corrosivo do humor destrói todos os fetiches sexuais, todos os sonhos românticos. Embora a narrativa seja muito engraçada, também é muito triste – há um quê de piedade excessiva que faz mal ao leitor nesse jogo-de-gato-e-rato que é a procura de parceiro(s).

“ Calcinhas no varal” (Sabina Anzuategui) tem proposta diferente: mostrar o horror em sua forma mais primitiva, o amor. Embora haja certa semelhança com textos mais desesperados (e lembrar “Quarta-feira de cinzas”, do Ethan Hawke, não é exagero), o texto de Sabina mergulha naquele ambiente em que a mulher se submete aos caprichos sexuais do amante, ato de submissão que traz em si o desapontamento, a insatisfação, a perda do prazer. Belo texto.


(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM NOVEMBRO DE 2009, em http://www.escritoresdosul.com.br/)

VOCê LEU O LIVRO DO CHICO?


A pergunta está envolta por uma redoma retórica, mas admite o sempre bem-vindo exercício da conversa fiada, aquele que fica mais saboroso em mesa de bar, os olhos brilhando com o (ou por causa do) desfile das garrafas de cerveja, os tira-gostos que se renovam como se fossem banquetes imperiais, umas moças bonitas que entram e saem de nossas vidas sem pedir licença, o final da tarde que não tarda nem oprime. 
Então, para que essa crônica obtenha algum sentido, façamos de conta que estamos em um boteco e... perguntas possibilitam a tessitura das hipóteses, passos que damos na direção das respostas. O narrador de uma novela (quase homônima ao título acima) do Márcio Moraes Valença lança uma possibilidade: “[...] não leu. Comprou e não leu, como o livro do Jô, do Caetano e tantos outros. Sua estante está cheia de livros nunca lidos”. É uma perspectiva interessante, que nos revela o quanto é engraçada a natureza humana. Por exemplo, esse hábito, raramente salutar, de adiar projetos. Seja por convicção, seja por brincadeira, as nossas histórias pessoais estão repletas de situações em que “deixamos para mais tarde” o que, de uma forma ou de outra, não gostaríamos de fazer nem agora nem nunca. Um amigo (que odeia a indústria cultural e a contemporaniedade) costuma dizer que é preciso esperar, no mínimo, uns dez anos para saber se um livro merece ser lido. E, com essa desculpa (ou, quem sabe?, filosofia existencial), vai estabelecendo vínculos afetivos com o envelhecimento, sabedor de que a vida é muito curta para perder tempo com algumas bobagens e certos livros.

Uma outra possibilidade é a estratégia clássica do atordoamento, que começa com o iniludível “não li e não gostei”. Em seguida, cabe acrescentar alguma explicação tola, o valioso recurso de passar um pouco de anestésico sobre a ferida, “eu só gosto do Chico músico, principalmente naquela fase em que ele esbanja sensibilidade, decifrando a alma feminina”. Antes que alguém reclame ou faça sugestões, deve-se aproveitar o momento e cantarolar (bem desafinado – senão não tem graça!) algum sucesso antigo, “Ah, se já perdemos a noção da hora / Se juntos já jogamos tudo fora / Me conta agora como hei de partir”. O encerramento do espetáculo deve contribuir para o exorcismo dos maus espíritos. Ou seja, com algum comentário canalha, “Você viu como aquela garçonete é gostosa?”

Claro que o livro do Chico está em um outro patamar. Há toda uma tradição intelectual familiar que não devemos ignorar. Os livros do Sergio (pai do Chico) são monumentos de interpretação sociológica, “biscoitos finos da modernidade” em um país que muitas vezes adora virar as costas para si mesmo. O filho, por sua vez, quando não está jogando futebol, dedilha umas frases musicais no violão e... como direi?, compõe umas cançonetas. Nada demais, é claro. Nada que não possa ser usado como mapa da alma lírica brasileira.
Mas não é só isso, como se não bastasse ser um protegido dos deuses, o Chico é um bom-moço, um modelo a ser seguido, e, com a ajuda de um par de olhos verdes, esbanja talento natural para atrair as mulheres – o que não evitou, depois de alguns anos de desgaste afetivo, que a mãe dos seus filhos aplicasse um glorioso pé-na-bunda do artista!

Pois é, o Chico vive cercado de fãs de carteirinha, aqueles que guardam a chama da fidelidade, da devoção e do respeito ao autor. São esses mesmos que atravessam as madrugadas devorando obscenamente o último livro do cara, suspirando, como se fosse o prenúncio de um orgasmo, diante de cada frase ou parágrafo que consideram mais interessante. São esses mesmos que, em um exame anti-doping, acusarão níveis altíssimos de intolerância à crítica e ao bom-senso.

“Ó falso Leitor, / amigo meu, meu igual, meu irmão!”, juro que guardo o teu segredo, não vou contar para ninguém, diz só para mim: você leu o livro do Chico?

Sei que você anda desencantado com a literatura, que não suporta olhar para as vitrinas das livrarias (ou para as listas dos mais vendidos). Em pilhas com trinta exemplares da mesma nulidade, destacam-se as explicações sobre como ganhar mais dinheiro, recordações sobre “os velhos tempos” e que o autor imagina terem sido inesquecíveis, recomendações sobre o caminho da felicidade, plágios diversos das idéias de Aristóteles, Platão, Sócrates, Freud, Proust e outros menos cotados, e, lá no meio da mesa, como se fosse um ingresso ao Olimpo, os olhos do leitor encontram algumas edulcoradas lições de ética – que ninguém segue, mas que sempre são citadas como paradigmas de comportamento social.

Enfim, faltam nas livrarias a leveza (no sentido empregado por Italo Calvino) de histórias que sejam convites ao prazer do texto (no sentido empregado por Roland Barthes). Em versão shakespeareana, falta “A tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing”. Ou melhor, significando tudo, porque é com as artimanhas da ficção que enfrentamos os conflitos desiguais que marcam a luta diária que a razão cultural precisa travar contra a razão utilitária (que, com a desculpa de que “é isso que vende”, abre um distanciamento abissal na intimidade que existe – ou deveria existir – entre o livro e o leitor, entre a tesão e a imaginação).

Nesse cenário apocalíptico, com um livro na mão, qualquer livro, todos nós parecemos anacrônicos, figuras que destoam do anti-intelectualismo vigente e das ilusões gozosas (gasosas) produzidas pelo capitalismo selvagem. Além disso (quando efetuamos esforços para considerar as demandas do mercado livreiro), corremos o risco de acreditar que entrar em uma dessas discussões sobre leitura, sobre o que ler ou deixar de lado, em vez de procurar pelo ideal iluminista de romper com a idade das trevas estamos colidindo com uma retomada da barbárie, momento em que ler, pensar e interpretar o mundo que nos cerca é uma maldição. Ou uma perda de tempo.

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Apesar das dúvidas produzidas pelas imposições ideológicas do “deus capital” (e das compensações fugazes do consumo), o livro do Chico espera pela minha leitura – e pela tua. Bem seguro entre as mãos, o volume (capa branca ou laranja, escolha você) é uma forma de anunciar o momento em que o humanismo transita entre a liquidez da retina e o pensamento concreto. Então, talvez como uma demonstração de resistência, talvez como uma forma de reforçar a esperança de que a modernidade ainda possuí espaço para a diversidade, essa é a hora de iniciar a leitura: “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias e do nome da minha família. [...]”.

(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM SETEMBRO DE 2009, EM http://www.escritoresdosul.com.br/)

quarta-feira, 9 de março de 2011

PÉROLAS ABSOLUTAS, CONCHAS RELATIVAS


 
Todos devem ter guardado, em algum recôndito de suas almas, a marca do rancor. O rancor que vai sedimentando aos poucos, que é como um câncer, silencioso e traiçoeiro. O rancor que é pior do que o ódio, porque é um ódio em conta-gotas.
Heloísa Seixas: Pérolas absolutas.

           
Em um dos poemas de Armando Freitas Filho encontramos a imagem de um colar que se rompe. As pérolas-lágrimas deslizam pelo chão, em todas as direções. O poema termina perguntando:

Como agarrar ou ser agarrado neste deserto triunfante
Por alguma coisa que me ame?  (Freitas Filho: 1985: 69)

            Provavelmente as personagens do romance Pérolas Absolutas, de Heloísa Seixas (Seixas: 2003), também querem agarrar/ser agarradas por alguma coisa que as ame. Mas, antes que isso seja possível, há esses momentos em que a interferência humana, com suas imprecisões e loucuras, mineraliza os afetos; há esses abismos que seduzem com promessas de vertigens e ataraxias; há esse marcar a terra com seus rastros inquietos para que outras almas solitárias possam, talvez, um dia compreendê-los (Seixas, 2003: 56).  
                Pérolas Absolutas é um romance de leitura difícil. Através de fragmentos,  muitas vozes se projetam no texto, criando uma espécie de algaravia – há momentos em que é difícil precisar quem está narrando e quem está sendo narrado. Perspectivas móveis, linhas de fuga que nunca se encontram no horizonte. Há também uma razoável gama de temas paralelos – vou, neste texto, me concentrar em apenas um: a relação afetiva, ou melhor, a relação de ódio, entre as “irmãs de sêmen” Sofia e Lídice. No entender de Heloísa Seixas, mulheres que compartilham de um mesmo homem são “irmãs de sêmen” e possuem um laço inquebrantável (Seixas, 2003: 139). Sofia , 45 anos, morena, olhos castanhos, 10 anos de casamento. Lídice, 35 anos, loura, olhos azuis, amante durante 10 meses. Duas mulheres. Desculpem-me, errei nas contas, não são apenas duas mulheres com o nome de duas cidades, uma búlgara, outra tcheca.  São três mulheres, circunvagando pela perversidade do existir: Sofia, Lídice e Lídia. Ninguém sabe com certeza se Lídia existe; ninguém sabe se Lídia é realmente a irmã gêmea e louca de Lídice. Vale arriscar uma hipótese mais interessante, dessas que manejam os duplos como se fossem peças de jogos de armar, jogos de amar, jogos de matar: Lídia é fruto de uma transformação metamórfica de Lídice, instante em que Lídice não mais deseja ser Lídice e então adota um corpo, uma voz e uma personalidade que estão fora do alcance da normalidade construída pela lógica. Isso é um pouco confuso, eu sei, eu sei, então vou, neste texto, me concentrar apenas na relação afetiva (ou melhor, na relação de ódio) entre as quatro irmãs: Sofia, Lídice, Lídia e Isabel. Sei que Isabel ainda não havia entrado nessa história, sua presença é tão pequena e ninguém sabe se ela realmente existe, se é apenas fruto da imaginação de Sofia; ninguém sabe se ela é a irmã gêmea de Sofia, aquela que morreu ou foi embora (é a mesma coisa, pois abandonar é um gesto de amor, como tantas vezes pressentiu Sofia).
Pérolas Absolutas está alicerçado na multiplicação das mulheres – difícil saber quem está deste lado da margem, quem está do outro, o espelho de Alice não era lá aquelas maravilhas, mas, como é de conhecimento público, geral e irrestrito,  permitia que os dois lados pudessem se encontrar, mesmo quando era apenas para brincar de esconde-esconde. Falta um espelho nesta história, falta uma história neste espelho, sobram personagens e esconderijos.
Pérolas Absolutas está alicerçado na violência. Uma rememoração de conflitos arquetípicos. Ou melhor, de conflitos masculinos – revisitação do velho e sempre jovem drama de família, muitas vezes enxertado no drama do amor, e sempre colorido pelo sangue da parte mais fraca.
Na mitologia greco-romana encontramos dois exemplos que nos permitem visualizar melhor a questão. O primeiro, uma dessas histórias em que o ódio é o combustível indispensável para proporcionar a grandiosidade do espetáculo, está relacionado com a morte de Euristeu, rei de Argólida. Segundo o oráculo, os habitantes da cidade deveriam escolher o novo rei entre os irmãos Atreu e Triestes. Ocorre que Aérope, esposa de Atreu, era amante de Triestes e, defendendo os interesses do amante, roubou do marido um velocino de ouro. Na guerra contra os Micênios, Triestes propôs que fosse escolhido como Rei aquele que apresentasse um velocino de ouro. Atreu que ignorava ter sido roubado, aceitou o desafio e perdeu o trono, a esposa e a dignidade. Zeus, aquele que tudo vê, não gostou do engodo e, divinamente, colocou ordem na casa. Triestes foi expulso de Argólida. Atreu, algum tempo depois, ao entender tudo o que havia acontecido, fingiu reconciliar-se com o irmão e o chamou de volta, oferecendo-lhe um banquete. Triestes saboreou, com especial apetite, as carnes servidas. Ao final, Atreu revelou que a carne que Triestes havia comido era dos corpos dos três filhos que Triestes havia tido com uma ninfa. Episódio similar pode ser encontrado no romance A festa do bode, de Mário Vargas Llosa.
O segundo exemplo da mitologia greco-romana é mais simples e menos trágico. Anfitrião, marido de Alcmena, estava no campo de batalha. Zeus, também conhecido como “o garanhão” do Olimpo, assumiu as formas físicas de Anfitrião e foi visitar Alcmena. Sem desconfiar que o marido não era o marido, Alcmena permitiu a “conjunção carnal”. Ao cair da tarde, o verdadeiro Anfitrião regressou e, celebrando a saudade e os seus direitos de marido, também efetuou a conjunção carnal. A lenda não conta se Alcmena foi contemplada, naquele dia, por dupla explosão de felicidade, mas a soma desses dois momentos resultou em filhos gêmeos: o filho de Anfitrião chamou-se Íficles; o filho de Zeus chamou-se Herácles (ou Hércules, na versão latina). O que importa, para o nosso contexto, é que Íficles era um mortal e que, apesar de ter participado da expedição dos Argonautas e da guerra de Tróia, nunca foi reconhecido como figura importante da mitologia. A verdade é que Íficles é um ilustre desconhecido, que sempre viveu na sombra do irmão.
Em Pérolas absolutas encontramos inúmeros pontos de contato entre o passado mítico e uma narrativa que procura realçar esses elementos comuns. Vejamos, por exemplo, os três casos (Henrich Mann, Gerald Dürrell e Tiago) que Lídice utiliza para caracterizar a ignomínia desses irmãos que quase chegaram juntos, que disputaram espaço, que fingiram e sofreram, muitas vezes imitando um sorriso de desdém quando na verdade se afogavam em mágoas (Seixas, 2003: 28). O que causa medo e terror em Lídice é a sombra de Íficles, é ser derrotado/superado pelo irmão que obtém sucesso na vida.  O que causa medo e terror em Lídice é entender que os derrotados – sabe? –, os derrotados não são os últimos. São aqueles que quase chegam – são os segundos. (...) Sempre em segundo plano. (Seixas, 2003: 144). Nesse sentido, é sempre interessante lembrar que Gerald Dürrell é aquele que não escreveu O quarteto de Alexandria; é sempre interessante lembrar que Lawrence Dürrell não escreveu, em 1956, talvez como um ato de vingança menor, um livro infanto-juvenil chamado “My family and other animals” (Minha família e outros animais). O Anjo azul,  de Henrich Mann, jamais foi valorizado adequadamente – a sombra de Thomas sempre foi mais intensa. E por fim, Tiago, filho de José, aquele que alguns exegetas acreditam ter sido irmão de Cristo, sempre esbarrou nas cruéis referências bíblicas: Tiago Menor.  
Lídice, além desses três homens que fracassaram na luta contra o irmão, ainda cita, aqui e ali, duas mulheres emblemáticas, Zelda Fitzgerald e Camille Claudel. A presença dessas mulheres parece nos avisar que o fantasma da perda da razão está rondando pela sala, propondo embriaguez, surpresas, prazeres. 
Lídice cita cinco fracassados. Ou melhor, seis, pois Lídice também está em segundo plano, ela que, na disputa fraterna, não conseguiu concretizar o sonho de violência heróica em que se trucida, sem a mínima culpa, o inimigo. Como destruir uma irmã gêmea que enlouquece? A loucura já não é uma forma natural de destruição? Como destruir uma “irmã de sêmen”? Seis fracassados, sete, oito, nove, mil, o que isso importa em um mundo repleto de pedras que não são preciosas? Deus é um geólogo a nos dizer que existe muito berilo e poucas águas-marinhas, muito berilo e poucas esmeraldas, muito berilo. A vida não é ônix ou pérola, a vida é falsificação.
Uma regra básica do darwinismo evolutivo: matar o irmão na infância é sempre vantajoso – elimina a concorrência –, matar o irmão na fase adulta é tolice – diminuí a  possibilidade de ajuda. Eis o conflito: como conviver com aquele que nos ajuda, mas, ao mesmo tempo, nos diminuí? Como conviver com esse fantasma insuportável que é a noção de estar em segundo plano, no lugar maldito? (Seixas, 2003: 29).  
A narrativa de Lídice é um inventário do fracasso – sob o ponto de visto do irmão que foi superado pelo talento ou pelo senso de oportunidade do outro irmão. E é aqui que entra em cena a figura de Anatole. Atenção, senhoras e senhores: é aqui que entram em cena os conflitos de baixo ventre. Homens e mulheres lutam pela posse física, mental, sexual do companheiro. Homens e mulheres lutam por um pedaço de carne – uma vez primitivo, sempre primitivo. É o tesão que determina a tensão. Apesar da metáfora parecer de mau gosto, é aqui que se esclarece o sabor das ostras. Ostras são moluscos bivalves. Conchas são esconderijos. Para alcançar a felicidade, o cavalheiro, por favor, precisa ultrapassar o fosso que separa o castelo dos perigos. Ou será que o senhor está a imaginar que a princesa irá para a cama com o primeiro dragão que aparecer nesta história? É, é impossível não pensar que conchas possuem grandes e pequenos lábios – a melhor parte do sexo está na imaginação. “Petit mort” (pequena morte), dizem os franceses quando querem se referir ao orgasmo. Fênix é uma ave mitológica que renasce das cinzas. Somo tudo isso e concluo: talvez seja essa a proposta que envolve a loucura: perder os sentidos, enfrentar e sobreviver às pequenas mortes, renascer para a vida – como se nada tivesse acontecido.
Mudo de cenário. As duas mulheres, as duas “irmãs de sêmen”, Lídice e Sofia, se encontram em um restaurante, uma com um revolver em punho, a outra como se fosse um alvo fixo. A esposa é a irmã que venceu; a amante, a “outra”, é a irmã que perdeu. O dedo no gatilho e a falta de luz. O conflito se resolve assim, de forma banal. Acabou a luz. Então, a pergunta volta a incomodar: a loucura é a luz ou é a escuridão? As imagens se dissolvem nos dois ambientes. As duas mulheres, as duas irmãs, sentam-se na mesa do restaurante, conversam, pedem ao garçom água e martíni. Lembram do passado e, sobretudo, lembram do homem morto. Pedem comida, pratos iguais, pratos gêmeos e, simbolicamente, comem a carne do morto. Anatole é o laço que sangue que as une. A esposa e a amante se descobrem irmãs, porque veneraram, amaram e odiaram um mesmo homem. Nessa conversa confrontam semelhanças, delimitam as diferenças. Agora, só dentro do peito do homem é temporal (Seixas, 2003: 189).        
             A palavra ostracismo é derivada de “ostraka”, fragmentos de cerâmica onde os gregos escreviam o nome das pessoas consideradas indesejáveis. Sofia e Lídice relegam as cinzas de Anatole ao ostracismo. Anatole passa a ser um elemento menor,, um grão de areia, um corpo estranho entre as duas mulheres, entre as conchas da ostra. Morto o homem, cessa o desejo pelo homem, mas não cessa o desejo da mulher. O desejo é como uma pérola. E as pérolas são produzidas quando um corpo estranho, um grão de areia, por exemplo, se instala no interior da concha, dentro da superfície gelatinosa.  Mas até do horror pode surgir beleza, como na contaminação que faz a ostra verter o nácar, que faz nascer a pérola. (Seixas, 2003: 233).
Eis a encruzilhada: mesmo sem ter esclarecido muitas coisas, mesmo tendo deixado muitos fios soltos, quase como uma recusa de interpretar Pérolas absolutas, quero propor dois finais para essa minha fala. No primeiro, tomo a  voz de Sofia e o silêncio de Lídice, e digo:

A noite dos olhos. A noite do chumbo, da pólvora, das cinzas. Eu me pergunto que nome teria essa noite.
A noite das pérolas.
Silêncio.
Pérolas absolutas.
Silêncio.
Era como Proust, nas cartas, se referia àqueles que, como ele, amavam seus iguais.
Pausa.
Dentro de um só corpo duas almas, duas partes, metades formando um todo, um todo esquerdo, proscrito, maldito até – mas ainda assim um todo. Pérolas absolutas.
Silêncio.
Você quer vir comigo? (Seixas, 2003: 234).

           

            O segundo final é um pouco mais prosaico. Conta a lenda que Zelda Fitzgerald estava sozinha em um quarto de hotel, em Paris. Em dado momento, na janela, começou a gritar: fogo, fogo, fogo! Chamaram os bombeiros, que arrombaram a porta. Zelda estava sentada na cama, chorando. Um bombeiro, ao olhar o quarto intacto, perguntou: Onde está o fogo? E Zelda, batendo no peito, respondeu: aqui, aqui!



 

Referências bibliográficas


ABREU, Caio Fernando. Prefácio. In:  FITZGERALD, Zelda. Esta valsa é minha. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FREITAS FILHO, Armando. 3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
SEIXAS, Heloísa. Pérolas absolutas. São Paulo: Record, 2003.

(Texto apresentado VI Encontro Internacional Fazendo Gênero. Florianópolis, 2004).  

Síndrome de Marsha Mellow: algumas observações sobre mulheres e sexualidade na literatura do século XXI




Somos a pornogeração de atores: por que escandalizar-se?
Tiffany Limos
(Coletiva de imprensa, depois da exibição do filme Ken Park,
no Festival de Veneza, em 2002).

Marsha Mellow é o nome da autora que está na capa de “Anéis nos dedos dela”, fictício romance inglês, que, com detalhes, descreve inúmeras manobras sexuais. Depois que o livro ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos na Inglaterra, parte dos leitores, cheios de curiosidade, procuraram conhecer a autora. Tarefa vã, pois Marsha Mellow não existe – é o pseudônimo de Amy Bickerstaff (que também não existe). Amy Bickerstaff é a narradora do romance Marsha Mellow e eu, de Maria Beaumont.1
A escolha de um pseudônimo para a “autora” de um romance com conteúdo sexual explícito é emblemática. As narrativa rotuladas como pornográficas, obscenas, licenciosas e fesceninas estão excluídas do sacro santo reino da literatura, onde a placidez e a beatitude habitam as letras e as leituras dos homens e das mulheres de boa vontade. Com as famosas exceções de sempre, Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de uns dois ou três outros escritores, a tendência geral é a de se considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não-verbais de caráter sexual. Alguns críticos argumentam que esses textos não estão preocupados com a técnica narrativa ou com qualquer tipo de pesquisa de linguagem, constituindo uma elaborada produção discursiva para o incremento do fluxo sangüíneo em uma parte específica do corpo masculino.
Historicamente, há um consenso social de que a pornografia, o erotismo e as discussões de caráter sexual são partes de um território inacessível ao feminino. Como todo bom tabu cultural, deve ser evitado por todos os indivíduos que foram agraciados com “educação e bom gosto” – há quem defenda a tese de que em determinadas situações as mulheres estão isentas dos mecanismos de sedução da linguagem ou das armadilhas da excitação física. Por isso, para alguns homens e mulheres, falar e escrever sobre sexo tornou-se um sentido perdido na comunicação humana.
Essa avaliação concorda com a tese de que narrativas que relatam mil e uma travessuras sexuais se opõem diretamente aos conceitos da virtude moral. Discutir a expressão e a expansão dos prazeres físicos muitas vezes é interpretado como uma maneira de fornecer visibilidade à uma espécie de prostituição da literatura.
 Em nome da nobreza dos sentimentos, muitos homens e diversas mulheres defendem o direito de preservar o feminino das “coisas sujas”. O moralismo vitoriano – apesar da distância cronológica – ainda é usado como um muro de contenção. Não obstante os avanços políticos e tecnológicos da modernidade, há uma imagem romântica incrustada no inconsciente coletivo da classe média. Uma parcela do imaginário feminino ainda está atrelada ao mito de Cinderela: com os pés no século XXI e o coração no século XVIII, essas mulheres sonham com o dia em que o “príncipe encantado” vai superar as adversidades, matar o dragão, derrotar o vilão e pedir em casamento a virgem desprotegida – ao fundo, uma música orquestral acompanhará as palavras “The end”, que encerram mais uma bela história de amor.
O dilema proposto por Marsha Mellow ou Amy Bickerstaff, que é o de negar existência ao fato de que o feminino têm desejos sexuais e que, em determinado contexto, pode e deve expressá-los, não é uma visão descolada da realidade. A literatura escrita e consumida por mulheres “normais”, em nome de uma pretensa defesa da intimidade, sempre procurou esconder certas dúvidas, incertos sentimentos. Muitas vezes, ao leitor, passa a sensação de que as mulheres se sentem constrangidas de revelarem algumas das sensações básicas do relacionamento afetivo. E fazem isso muito bem através do onírico, que é uma estratégia compensatória para o desejo reprimido. Como não há obstáculos para o sonho, o interdito manifesta-se através da expressão do desejo. Confundem a procura pelo prazer com o proibido. Ou melhor com o medo de tornar público aquilo que consideram o proibido. Por isso mesmo, o máximo que algumas escritoras e leitoras se permitem é o erotismo, uma forma requentada, digo, requintada de esconder uma relação honesta com o corpo. Dito com outras palavras, edulcorar a realidade e camuflar algumas situações-limites é uma das maneiras com que a negação da união entre o masculino e o feminino se pronuncia. No momento em que é necessário esclarecer as questões fundamentais que definem quem é quem no espaço social, freqüentemente o feminino literário sucumbe às imposições do bom comportamento social.
A modernidade, que introduziu mudanças estruturais nos costumes, também  edificou um cenário artificial para as relações humanas. Parte significativa do contexto social ainda entende como problemáticas as diferenças entre sexo para reprodução e prazer sexual. Por isso mesmo é que descrever as relações afetivas e sexuais implica em compartilhar com o leitor um conjunto de sentimentos e sensações que, no curso da História, foram cerceados ou omitidos. A dor de se aproximar do real está expressa no fato de que muitas escritoras, cansadas de ficar “meio” excitadas, cansadas de negar a própria realidade, perceberam que alguma coisa estava faltando. Entre a doçura dos lábios do príncipe encantado e o apagar das chamas que alimentam carências, alguma coisa está faltando.
Essa perspectiva de que há algum tipo de falta é o que está gritando, apesar de não gritar, pelo menos explicitamente, uma tendência da literatura feminina brasileira contemporânea de ficção. Com a percepção de que a evolução da história social das mulheres demanda por uma outra interpretação das relações amorosas, do embate sempre doloroso que é travado diariamente entre homens e mulheres, algumas escritoras, cientes de que há um espaço a ser ocupado e que parte da literatura feminina de ficção deambula ao redor da paixão romântica, o que significa ignorar diversas ações humanas conseqüentes ao ato amoroso, estão adotando em suas narrativas uma voz mais solta, menos reprimida, no que refere aos assuntos de caráter sexual. É uma atitude corajosa, ou seja, repleta de crueldade. Mas, entre as elipses, que segredam intimidades, e os sofismas elaborados por uma prática comportamental, tornou-se imperativo inventar uma razão literária mais integrada com a totalidade e menos apegada às fantasias reducionistas, de inspiração romântica. Em alguns casos, as “novas” narrativas fazem questão de eliminar a fronteira que existe entre o erotismo e a descrição sexual, entre a elaboração literária pretensamente sutil e o relato nu e cru.
Evidentemente, não se trata de reduzir o texto a um conjunto de narrativas em torno de orgasmos e fornicações. Tampouco, a questão pode ser resumida às descrições gráficas sobre o embate entre pênis, vagina, ânus e boca. Esse tipo de narrativa, como a história literária já comprovou “n” vezes, naufraga na monotonia e na banalidade. Coerência narrativa não deve ser confundida com pornografia barata. Mesmo em casos em que as narrativas procuram se mostrar como valores de contestação ou de afirmação de alguma tese, faz-se necessário estar atento ao fato de que a procura pela expressão de um conjunto de relacionamentos e emoções deve estar conectada com um propósito aquém da exaltação da libido. É preciso explorar as sombras, desmascarar os fantasmas, mostrar, se possível com graça e sabedoria, os segredos da intimidade. Entre a literatura e a interdição há um espaço que anseia por uma forma de expressão textual e que ao mesmo tempo em que contempla a liberdade e a libertinagem, revela o desejo e o prazer. 
Por esses motivos – e muitos outros –, torna-se importante responder a uma pergunta: escrever sobre sexo, nomeando com todas as letras as diversas maneiras e posições com que é possível a troca de fluídos corporais entre homens e mulheres, resulta em algum tipo de benefício para a questão feminina? Sim e não.
A sexualidade é uma das últimas fronteiras políticas do corpo humano. O uso de descrições mais realistas na literatura feminina permite que o desejo – e suas derivações – seja nomeado pelos nomes com que o desejo – e suas derivações – é conhecido entre quatro paredes. Essa postura nega o uso de uma gramática sexual como exclusividade do masculino – o que é, inegavelmente, um avanço no terreno da linguagem. Como acréscimo, a quebra de qualquer tipo de interdição é sempre saudável, na medida em que concorre para mudar comportamentos, ajuda a estabelecer novos níveis de convivência social e contribuí para diminuir a exclusão. Ao colocar em xeque os limites do proibido, essas narrativas, bem como suas escritoras, estabelecem as bases de uma mudança social.
O aspecto negativo está na mercantilização dos corpos, que imediatamente transporta o sexual para o patológico. O que deveria ser a expressão de uma sexualidade que foi reprimida por atos culturais da sociedade machista, muitas vezes é confundida com “esses livros que se lêem com uma só mão”, na alegre definição de Jean-Marie Goulemot.2 É preciso evitar a armadilha relatada por Anaïs Nin, no prefácio de Delta de Vênus.3 Certa vez, depois de ser contratada para escrever várias histórias eróticas, Anaïs Nin recebeu um telefonema. Ouviu uma voz lhe dizer, a respeito do trabalho já entregue: “Está ótimo. Mas deixe de fora a poesia e as descrições de qualquer coisa além do sexo. Concentre-se no sexo”.4 Deixe de fora a poesia, disse a voz, unificando a expressão do desejo com a pornografia – que era o que ele queria ler e ela não desejava escrever.
Semelhante equívoco ocorreu, no Brasil, com a literatura produzida por Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Cada cópia desses livros foi consumida como um “catecismo”. E a forma com que eles foram editados já era um indicativo do comportamento de seus leitores: capa vagabunda, mal desenhada, papel grosseiro, impressão tosca. Normalmente, esses livros eram vendidos por “baixo do balcão” ou em envelopes de plástico preto, como que a denunciar o conteúdo – que, indiferente do que as autoras tivessem escrito, foram consumidos como pornografia.
Para tentar evitar esses equívocos é que quase todas as narrativas modernas que se utilizam da descrição sexual mostram significativa preocupação com as regras do bom comportamento e da literatura de “qualidade” – independente do fato de que poucos conseguem definir o que é “qualidade”. Neste sentido, a qualidade está ao lado da contenção. A linguagem passa a ser utilizada como um instrumento de repressão. O politicamente correto almeja corrigir politicamente tudo aquilo que não se enquadra no padrão social de “qualidade”. E isso é uma anomalia – seja do ponto de vista do que pode e/ou deve ser corrigido, seja do ponto de vista da política opressiva que o moralismo social estabeleceu como parâmetro de comportamento. Uma das vantagens da literatura realista, que não teme descrever as escolhas da sexualidade como um dos ingredientes fundamentais dos relacionamentos humanos, está nesse avançar contra os tabus culturais.
Dentro dessa ótica, mostra-se interessante um contraste entre A casa da paixão, de Nélida Piñon,5 um dos grandes clássicos da literatura erótica brasileira, e o romance Amadora, escrito por Ana Ferreira.6 Enquanto A casa da paixão possuí uma textura finamente elaborada, na medida em que descreve com apuro de linguagem, repleta de furor e fulgor, o ato amoroso, é divertido perceber como Amadora, que é uma narrativa edificada na linguagem coloquial, choca as almas mais puritanas. A vulgaridade insensível,7 para usar uma expressão de George Orwell, pode ser encontrada, por exemplo, neste trecho: [ele] Trancou a porta e me mordeu inteira. Eu dei como uma égua no cio. Gozei relinchando, olhando pros cavalos, bem potranca.8 O conteúdo transgressor, agressivo, direto de Amadora renega as manobras evasivas da linguagem. Enquanto que em A casa da paixão todos os personagens ainda estão procurando pela felicidade, em Amadora o que se destaca é a celebração da felicidade, através da narrativa de uma mulher que considera o sexo como uma das grandes delícias da vida.
O mais importante é que os dois textos, diferentes na abordagem, mas similares na adoção de uma estética com conteúdo sexual, estão irmanados na procura de uma voz que seja capaz de expressar com clareza e tesão a sexualidade feminina. Independente de leituras fora de contexto, que procuram por pornografia em qualquer lugar – o que é lamentável, mas é um risco a que nenhum texto literário está imune –, não é possível deixar de observar uma questão axial: escrever é um ato de coragem, de despojamento das vaidades e dos pudores. Ana Ferreira e Nélida Piñon não tiveram escrúpulos. Colocaram no papel o que consideraram necessário para expressar os seus sentimentos, seja isso considerado pornografia ou não. Cientes da correção expressa por um personagem de Nilza Resende: Não há foda que se compare às boas palavras contos romances, como não há palavra conto romance que se compare a uma boa foda,9 Ana Ferreira e Nélida Piñon enfatizaram que, entre o medo de ser objeto de masturbação e o relato de histórias em que o feminino se apresenta como identidade, é possível – com sensibilidade, com talento e, sobretudo, com coragem – retratar uma parcela da vida intima das mulheres.
E isso significa que a prosa muitas vezes assume a forma de poesia. Infelizmente, para poder captar algumas rimas, incertas alusões, complicados jogos de palavras, é necessário um leitor que seja perspicaz o suficiente para entender que é nas entrelinhas, um desses lugares que o masculino muitas vezes têm dificuldades para encontrar, que estão escondidos os melhores versos.
O romance Calcinha no varal, de Sabina Anzuategui,10 por exemplo, foi construído como um grande poema: uma voz sofrida, dolorosa, cheia de angústias. Os desencontros afetivos e a efervescente sexualidade ganham uma dimensão pouco usual na literatura brasileira. Como uma repetição incessante e intermitente, amor rima com dor e no ritmo de um bolero fora de moda, desses em que atravessam as madrugadas ao lado de um copo quase vazio de whisky com guaraná, constrói um hino de louvor à dor de corno, esse sentimento característico da brasilidade. Sem negar o afeto, sem expressar (grandes) rancores pela opressão masculina, a narradora de Calcinha no varal, descrevendo as diversas vezes em que desceu aos infernos da solidão amorosa, não poupa descrições sobre a sua vida privada – esses detalhes arrebatadores, muitas vezes assombrosos, compõem um cenário emocional dilacerante e mostram que é possível a existência de uma literatura diferenciada da mesmice de outras narrativas sobre a frustração amorosa. Quem anseia pela cura não deve ter medo da dor.
Igualmente poéticos, além de muito divertidos, são alguns dos textos de Ivana Arruda Leite. É o caso do mini-conto “Por Deus”: “Tira essa faca do meu peito e enterra o pau. É muito mais confortável”. 11
É muito mais confortável ver que a literatura feminina brasileira está se libertando de algumas amarras e aprendendo a cultivar com paixão um conjunto de palavras que estavam marginalizadas ao universo masculino. Com tesão e bom humor, a literatura feminina contemporânea está flexionando alguns dos verbos mais suculentos da língua portuguesa: olhar, desejar, despir, chupar, dar, comer, introduzir, receber, abrir, fechar, meter, tirar, trepar, foder, gozar, enlouquecer, amar. E no caso específico do último verbo, cabe lembrar que amar não é possível apenas com boas intenções ou com chá de flor-de-laranjeira: fundamental é agir, mostrar, demonstrar, exercer o desejo.
Refazer o território corroído por uma linguagem que é prisioneira de convenções herdadas de um passado cada vez mais distante, que reproduzem estereótipos e preconceitos, é uma conquista política, é uma reinvenção do Eu feminino, perdido entre tantas abstrações, dívidas e dúvidas emocionais. Com a ampliação das fronteiras, o desejo sai das sombras e – com um pouco de carinho, que carinho nunca é demais – se transforma em algum tipo de sentimento mais próximo da realidade em que esses textos foram escritos.  
Finalizando, cabe observar que a questão sexual nas narrativas femininas não se resolve através do preconceito. Essa não é uma discussão entre vestais e ninfomaníacas, entre “donas de casa” e prostitutas, entre o bom comportamento e a pornografia.  Em alguns momentos, sequer é uma discussão; no máximo, é uma conversa, como nos lembra uma cena do conto O jaguar azul, de Sonia Rodrigues.12 A avó e a neta estão trocando impressões sobre “os fatos da vida”. Diz a avó:

      (...) Quando uma mulher gosta de pau, minha filha, tem que aprender a lidar com ele.
      Vovó! – Leda enxugou as lágrimas escandalizada. – Eu nunca ouvi você falar “pau” em toda minha vida!
      Ah, isso é porque sua mãe e seu pai nunca deixaram vocês sozinhas de verdade comigo. Uma coisa que eu gostaria de ter feito. Levar vocês a Paris, na adolescência, sentar num café, conversar sobre homens e seus paus. Por que será que as mulheres nunca têm a oportunidade de iniciar as mulheres mais novas, do mesmo sangue, aos segredos do pau?13




1 BEAUMONT, Maria. Marsha Mellow e eu. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2005.
2 GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
3 NIN, Anaïs. Delta de Vênus: histórias eróticas. Porto Alegre: L&PM, 2005.
4 NIN, Anaïs. Op. cit. p. 7. 
5 PIÑON, Nélida. A casa da paixão.  4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
6 FERREIRA, Ana. Amadora. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
7 ORWELL, George. Dentro da baleia. In: ______. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 100.
8 FERREIRA, Ana. Op. cit. p. 100.
9 REZENDE, Nilza. Eu quero te comer, Sophia. In: SANCHES NETO, Miguel. Contos para ler na cama. Rio de Janeiro: Record, 2005.  
10 ANZUATEGUI, Sabina. Calcinha no varal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
11 LEITE, Ivana Arruda. Ao homem que não me quis. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 16.
12 RODRIGUES, Sonia. O jaguar azul. In: ______. Do que os homens têm medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 83-109.
13 RODRIGUES, Sonia. Op. cit. p. 96.


(Texto apresentado no VII Encontro Internacional FAZENDO GÊNERO. Florianópolis, 2006).

ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE A FRATERNIDADE CONSANGÜÍNEA

               
               

Todas as famílias felizes são parecidas entre si.
As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.
Leon Tolstoi: Ana Karênina.1


Elizabeth Roudinesco, em livro recente, afirma que a família está em desordem.2 Não é uma opinião isolada. Para Jean-François Lyotard as relações familiares são os lugares privilegiados da tragédia. 3 Jacques Lacan não poupou palavras e anunciou que a família não passa da expressão social de uma desordem psíquica perfeitamente organizada em aparência, mas incessantemente destruída a partir de dentro.4 Mesmo se não concordarmos com todo esse pessimismo, basta observar diariamente as páginas dos jornais para concluir: a família está em guerra civil.
Ou seja, esse conjunto de afetos que os burgueses tentaram, em momento impreciso, chamar de família, não mais comporta algumas pertenças. Os laços de sangue deixaram de ser suficientes para estabelecer algum tipo de argamassa afetiva.
A família se transformou em um cenário conturbado, onde são deflagradas milhares de balas perdidas sob a forma de medo, traição, ódio e relações afetivas incompletas. Pensadores como Christopher Lasch 5 e Michel Maffesoli 6 defendem a tese de que estamos vivendo um momento histórico que privilegia o egoísmo, o narcisismo e a força tribal. A família não está imune a esse tipo de contaminação. Talvez essa seja a sua maior tragédia.
O que precisamos, inicialmente, é recuperar o conceito de família, que sempre esteve envolvido por uma aura romântica, causada por uma normatização social que ignora solenemente a microfísica do poder que a enlaça e esgarça. A família é o espaço em que se realiza o embate entre a lei a transgressão. E isso significa, prioritariamente, que a lógica perversa do desejo se impõe, de forma constante e intensa, sobre quaisquer que sejam as regras do convívio social. Essa fratura afetiva demarca um novo instante na barbárie que está a corroer a civilidade burguesa: a violência é forma contemporânea em que o gozo se realiza.
Para que possamos entender parte dessa crônica de uma morte anunciada, um recorte é significativo: o relacionamento fraterno. Irmãos são indivíduos que, em teoria, se encontram em relativa igualdade afetiva, na medida em que estão expostos aos mecanismos de negociação amorosa, apesar das armadilhas que resultam da competição familiar por amor, cumplicidade e poder. A arquitetura fraterna está envolta em um delicado equilíbrio, onde qualquer deslize causa estragos irreparáveis. Poucos conseguem edificar o afeto – e suas extensões. Por isso mesmo é que, na prática, irmãos são sinônimos de ressentimentos e de mesquinharias. Irmãos possuem pouca maturidade emocional e, em determinadas situações, em lugar de resolver as diferenças afetivas, preferem transformar a família em um campo de batalha. Irmãos são inimigos – e combatem entre si até o extermínio mútuo.
A representação literária, no Brasil, deste drama (através de textos de Machado de Assis, Mário de Andrade, Cornélio Penna, J. J. Veiga, Oswaldo França Júnior, Raduan Nassar, Milton Hatoun, Silviano Santiago, Bernardo Ajzenberg e Paulo Santos Rodrigues, entre outros) confirma a tese.
Mas, antes de citar alguns exemplos literários, é importante assinalar que a representação da luta entre os irmãos nem sempre se dá de forma bárbara ou explícita. Os escritores que se aventuraram no tema, habitualmente se utilizam de sutilezas, nuanças, esquivas, sofisticações, jogos de cena, teatralizações. Ninguém quer dar a cara para bater. No máximo, joga a culpa no narrador, afinal a história é “dele”, é ele (o narrador) que descreve os detalhes sórdidos dessa comédia, digo, dessa tragédia.
Vejamos, por exemplo, Machado de Assis. Em “Esaú e Jacó”, 7 a boníssima e civilizada  presença do Conselheiro Aires, que ocupa parte singular da narrativa, nada mais é do que uma forma de esconder a disputa fratricida entre os gêmeos Pedro e Paulo. O líquido amniótico da narrativa é a luta pelo poder, em um momento histórico de transição política. Neste contexto, a narração do Conselheiro Aires tem função ideológica muito clara: é um filtro da violência, uma sombra romântica tardia. E que, em alguns momentos, como nos episódios da cartomante e da tabuleta, por exemplo, transforma a disputa política em uma espécie de suco de groselhas. Suco este que é servido para o leitor como uma forma de adoçar a boca e a imaginação. Ou seja, os rituais de destruição fraterna e os instintos sexuais são de tal forma mascarados que ao leitor menos avisado só resta concluir que o amor é lindo e que a personagem Flora, incapaz de escolher por um dos irmãos gêmeos, deveria entrar para um convento – o que quase acontece, pois a moça morre virgem  e de uma providencial doença súbita!
Defendendo posição contrária, Mário de Andrade, no conto Caim, Caim e o resto, 8 não perde tempo com sutilezas e vai fundo. Suas personagens – os irmãos Aldo e Tino – entram em tal processo ensandecido de destruição que ninguém consegue entender o porque! Tudo começa em uma quermesse e...  os irmãos se encantam com o “olhão de jabuticaba rachada” de uma “mulatinha esperta” chamada Flora. Antes de prosseguir na descrição do grande evento que se segue a esta cena, creio ser importante perguntar: por que Mário de Andrade escolheu o nome “Flora” para a personagem que deflagra o estopim de ódio entre os irmãos? Seria essa escolha uma espécie de diálogo com o texto de Machado de Assis? Ou alguma alusão estranha capaz de proporcional trocadilhos duvidosos como “flora medicinal” ou “flora vaginal”? Mistérios, mistérios! Pois bem, depois que a Flora foi devastada pelos olhares fraternos, as ações dos dois irmãos se voltam para apenas uma e exclusiva atividade: machucar o outro irmão. O resultado de tamanho esforço é idêntico ao mito bíblico: Aldo aperta o pescoço do irmão até que ele (Aldo) sinta a ausência da vida. Simples assim. Em seguida, o assassino vai para a cadeia, mas logo depois é solto por conta do dedo que o irmão morto havia lhe arrancado a dentadas durante a briga. Maior demonstração de afeto, impossível!
A contribuição do mineiro Cornélio Penna ao tema é interessante. Em “Dois romances de Nico Horta”,9 a relação fraterna é um daqueles momentos difíceis de serem entendidos, pois os laços de sangue são tão pesados que a noção de família se transforma em uma carga supra-humana.  O enredo de Dois romances de Nico Horta, descartadas mil e uma peripécias psicológicas e a obsessão descritiva de Cornélio Penna, é de uma simplicidade franciscana: Nico Horta e Pedro são irmãos gêmeos e estão – surpresa! – apaixonados por Maria Vitória. Depois da habitual lengalenga narrativa, Nico Horta consegue casar com a princesa encantada. Logo depois, acontece algo muito mais espetacular: Pedro desaparece. Em dado momento, assim sem mais nem menos, a personagem sai de cena para nunca mais voltar. Não há explicações, não há justificativas. É como se Pedro nunca tivesse existido. Poucos leitores conseguem entender as sutilezas que se escondem nessa charada. Mas, para não perder a viagem, arrisco um palpite: os vínculos afetivos precisam de renovadas manifestações de carinho, senão eles fenecem. Tenho a impressão de que Cornélio Penna (ou o seu narrador) percebeu que a relação fraterna entre Pedro e Nico Horta estava de tal forma deteriorada que a única solução para o impasse era defenestrar o pobre Pedro, que por não ser de pedra, ao pó retornou.
Esses três exemplos provavelmente seriam suficientes para, por linhas tortas, dar algum sentido à minha tese. Talvez. Mas, se me perdoarem, neste vôo panorâmico, quero acrescentar mais algumas narrativas. José J. Veiga? No conto Entre irmãos, 10 de José J. Veiga, uma bela surpresa: poesia. Os irmãos, cuja diferença de idade é de um pouco mais de dezessete anos, nunca haviam se encontrado antes. Na sala de espera, frente a frente, aguardam notícias da mãe, que está morrendo. Enquanto isso, conversam. Mas é uma conversa desencontrada, constrangedora, cheia de hiatos e medos. É uma conversa onde ninguém deseja demarcar território, na medida em que falta para eles uma história comum e essa história não pode ser construída por um encontro circunstancial entre os irmãos ou pela morte da mãe.     
Em total oposição encontramos Lavoura arcaica,11 de Raduan Nassar. E isso é excelente, pois as diferenças entre os irmãos Paulo e André permitem um grande momento para quem quer trabalhar com as relações fraternas. E se houver um pequeno acréscimo nas anotações, como o desejo incestuoso que André sente pela irmã Ana, então a festa está completa. Infelizmente, esse olhar não é consenso. Muitos dos críticos que analisaram Lavoura arcaica preferem derramar baldes de tinta sobre a parábola do filho pródigo. Tudo bem. Aqui não é o fórum adequado para promover uma revisão teórica, mas, a título de provocação, gostaria de destacar um pequeno trecho de Lavoura arcaica: 

Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” eu gritei de boca escancarada (...) vi que meu irmão, assombrado pelo impacto de meu vento, cobria o rosto com as mãos, era impossível adivinhar que ríctus lhe trincava o tijolo requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os olhos, estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava com certeza a terra sólida e dura, eu podia escutar seus gemidos gritando por socorro...12

            Com muito menos do que isso já dava para defender um doutorado! Principalmente se esses dois assuntos, a rivalidade entre irmãos e o incesto, forem desdobrados em análises comparativas com, por exemplo, Pedro e Paula,13 do escritor português Helder Macedo.
Vou abrir aqui um pequeno parênteses para destacar que o incesto e o estupro, mais do que tabus morais, são também tabus literários. Por isso mesmo é que muitas das narrativas aqui citadas se concentram em figuras masculinas. Esse procedimento visa afastar a possibilidade de sedução entre os protagonistas. A favor dessa tese, o afastamento da possibilidade de sedução entre as personagens, cabe lembrar que a presença feminina (seja irmã do protagonista ou não) em todas as narrativas que envolvem embates entre irmãos acaba na cama. Atravessando fronteiras, não posso deixar de citar, como exemplo significativo desse pensamento, um conto muito bonito de Jorge Luis Borges: A intrusa.14 Mas, voltando ao motivo deste parênteses, o que estou tentando dizer é que a luta fratricida parece ser um atributo da  masculinidade. Não encontrei até agora um único exemplo de embate fraterno entre irmãs! Parece que há uma aureola angelical rodeando o mito das irmãs Cajazeiras!15 Ainda não tenho explicação para isso. Fecha parênteses.
Bernardo Ajzenberg e Tony Bellotto também colocaram uma pitada de pimenta dentro do caldeirão onde o tema está sendo cozinhado em fogo brando, como convém ao alimento que é servido no banquete literário. Tony Bellotto não é exatamente o que poderíamos chamar de um autor “sério”, mas a sua personagem Remo Bellini, presente nos romances Bellini e a esfinge 16 e Bellini e o demônio, 17 apresenta uma característica muito intrigante: seu irmão gêmeo, Rômulo, que morreu logo depois do parto, o persegue como uma sombra. A morte do irmão é, na vida de Remo, um estorvo, uma cicatriz, e esse fato, em alguns momentos da leitura, parece nos dizer que Remo não se sentiria tão incomodado se o irmão vivo estivesse! Bellotto, que utiliza um narrador em primeira pessoa, coloca na discussão da fraternidade consangüínea um problema interessante: a ausência física não é um determinante para que os conflitos fraternos sejam eliminados! O divertido dessa história é que o inspirado romance inglês O dom de Gabriel,18 de Hanif Kureishi, também trata de experiência similar – embora, é necessário destacar, o irmão morto, no texto de Kureishi, é uma espécie de anjo, uma entidade espiritual que socorre o irmão nos momentos em que isso se faz necessário.
O romance A gaiola de Faraday,19 do Bernardo Ajzenberg, lança luzes, holofotes gigantescos, sobre um assunto sempre interessante: sexo. Afinal, dormir com a cunhada, principalmente se ela for do tipo gostosa, é uma fantasia recorrente no imaginário machista. Júlio e Enzo são como a água e o azeite: não se misturam. Em paralelo, disputam Queila, a esposa de Enzo. Embora o romance não se detenha nas minúcias do desentendimento entre os irmãos, é possível perceber que eles (os irmãos) fizeram da vida familiar uma disputa incessante e que é potencializada no corpo de Queila.
            Antes de apresentar o último grande convidado, mencionarei rapidamente À margem da linha,20 a instigante novela escrita por Paulo dos Santos Rodrigues. Caminhando pelos trilhos do trem e procurando pelo pai desaparecido, os dois irmãos adolescentes fazem desse percurso um divisor de águas, o mundo repartido entre o antes e o depois. A ausência do pai culmina na cena em que o irmão mais novo refaz o itinerário dessa procura e desafia o irmão mais velho. A ruptura, neste caso, não se realiza como embate fratricida, mas como amadurecimento humano. A vida das personagens se renova no instante em que os irmãos decidem se separar.
O último livro incluído nestas “anotações” é Dois irmãos, 21 de Milton Hatoun, e que foi publicado em 2000. A história da luta fratricida entre os gêmeos Yaqub e Omar de certa forma refaz o confronto entre os gêmeos Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Mas há diferenças fundamentais, inclusive a possibilidade implícita de incesto entre Rânia, a irmã mais nova, e os gêmeos. Diferentes em substância e semelhantes na aparência física, Yaqub e Omar travam um combate ensandecido pelo nada. Ou melhor, há uma proposta mútua em substituir a fraternidade pela violência. O embate que travam se caracteriza por uma repetição do mito primevo, momento em que a relação com o Outro decorre de uma construção afetiva fraturada. O ódio, circunstância máxima de afastamento familiar e humano, se multiplica como descontrole físico, como um estado psíquico que se assemelha à selvageria de uma guerra. O inimigo, inventado pelo irracionalismo, é o Outro. Luis Cláudio Figueiredo entende que, quando as promessas de civilização são corroídas e a solidariedade entra em crise, as fantasias onipotentes são acirradas pela rivalidade.22 Por isso, qualquer motivo é motivo. A discórdia impera. E isso é mais do que suficiente para que a barbárie triunfe.
Finalizando, as minhas anotações sobre as relações fraternas consangüíneas aqui se esgotam. No entanto, a cartografia da fraternidade consangüínea não está esgotada. Para que possamos entender o quanto mineralizadas estão as relações afetivas entre irmãos, necessário se faz lembrar que, se na mitologia grega encontramos o exemplo de amizade fraternal dos gêmeos Castor e Pólux,23 que depois foi revitalizada por Alexandre Dumas, no clássico Os irmãos corsos,24 na modernidade a ocorrência múltipla de Pedros, Paulos, Anas e Floras constitui um reflexo do grau de violência e destruição em que a fraternidade está localizada. A literatura, ao conciliar a historia com a imaginação, ambiciona cobrir esse território, essa terra devastada, com um olhar de amizade e de compreensão. Infelizmente, a modernidade está expressa na intensidade com que esse tipo de conflito se desenvolve; a modernidade está expressa no processo de destruição fraterna narrada em Os irmãos Karamazov,25 de Fiodor Dostoiévski.



1 TOLSTOI, Leon Nikolaievitch. Ana Karênina. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 11.
2 ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
3 Apud GUMBRECHT, Hans Ulrich. Os lugares da tragédia. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr; MARSHALL, Francisco (Orgs.). Filosofia e literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. (Filosofia Política. Série III ; n. 1). p. 11.
4 Apud ROUDINESCO, Elizabeth. Op. cit. p. 150.
5 Ver LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983; e ______ . O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
6 Ver MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997; e ______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
7 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990.
8 ANDRADE, Mário de. Os melhores contos de Mário de Andrade. (Seleção de Telê Ancora Lopez). 5. ed. São Paulo: Global, 1988. p. 27-34.
9 PENNA, Cornélio. Dois romances de Nico Horta. Rio de Janeiro: Artium, 2000.
10 VEIGA, José J. Entre irmãos. In: MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 186-189.
11 NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
12 NASSAR, 1982, p. 94-95.
13 MACEDO, Helder. Pedro e Paula. Rio de Janeiro: Record, 1999.
14 BORGE, Jorge Luis. A intrusa. In: ______. O Aleph. Rio de Janeiro: Globo, 1986. p. 139-143.
15 As três irmãs Cajazeiras são personagens da telenovela O bem-amado, de Alfredo de Freitas Dias Gomes, exibida em 1973, pela Rede Globo de Televisão.
16 BELLOTTO, Tony. Bellini e a esfinge. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 BELLOTTO, Tony. Bellini e o demônio. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
18 KUREISHI, Hanif. O dom de Gabriel. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
19 AJZENBERG, Bernardo. A gaiola de Faraday. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
20 RODRIGUES, Paulo dos Santos. À margem da linha. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
21 HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
22 FIGUEIREDO, Luis Cláudio. Sobre pais e irmãos: mazelas da democracia no Brasil. In: KEHL, Maria Rita. Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 155.
23 Ver, entre outros, GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 123 (Dióscoros).
24 DUMAS, Alexandre. Os irmãos corsos. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Clássicos juvenis).
25 DOSTOIÉVSKI, Fiodor Mikhailovitch. Os irmãos Karamazov. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.


(Texto apresentado no V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA LITERATURA. Porto Alegre, 2004)