sexta-feira, 17 de junho de 2011

ENJOY, SING THE POOR JIM


O dia 16 de junho é uma invenção. Pior, uma celebração. Poor Jim. Nesse dia, neste longo dia, acontece a ação narrativa do romance Ulisses, escrito por James Joyce, 846 páginas na tradução do Antonio Houaiss, 888 páginas na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Para quem gosta de literatura, ler esse texto é adrenalina equivalente a saltar de para−quedas − sem o para−quedas. Ou entrar no labirinto, a possibilidade de encontrar o Minotauro em cada página. E não há garantias de salvação, o fio de Ariadne desapareceu, riverrun (riocorrente) em cada parágrafo, em cada frase. Pobre James.

Dizem que nesse livro nada acontece, há um vazio que não se preenche. Quem é que vai querer ler um texto que esmiúça lentamente 24 horas na vida de três desajustados, três patetas, patéticos palhaços a brincar no circo, circulo, social que constituí a história desse país louco chamado Irlanda? Não há como esquecer aquele personagem do filme Inimigo intimo, quando diz: Não espere finais felizes. Não é uma história americana. É irlandesa.

Não bastasse esse anátema, depois de tantos anos, a voz de James Joyce ainda produz confusão nos leitores, eleitores dessa causa, o livro aberto em alguma aleatória página: Coloquei no livro tantos enigmas e quebra−cabeças que os estudiosos se manterão ocupados durante séculos, discutindo a respeito do que eu quis dizer, e esta é a única maneira de garantir nossa imortalidade. Imortalidade garantida queria o cara, na maior cara−de−pau, e, claro, conseguiu o intento, nem precisou fazer muita força. Ulisses é um tour de force, um terremoto, uma manifestação incontrolável da natureza, não é exagero fazer comparações com o poema The Waste Land, de T. S. Eliot, a terra devastada, desolada, isolada, abril é o mais cruel de todos os meses, embora tenha sido em junho que a traição de Molly Bloom foi revelada.     

O dia 16 de junho é um evento literário e um engano cultural. Livrarias e bares no mundo todo celebram o dia em que o casal Bloom, Leopold e Molly, casados na igreja católica, separados na cama, colocam sobre a mesa todas as cartas, todas as garrafas que produzem essa doce embriaguês causada pela descoberta que as histórias de amor (muitas vezes singelas histórias de humor) terminam mal, meu reino por uma garrafa (lata) de Guinness, disse o rei no meio da batalha, descontente porque lhe foi oferecido um pouco de irish coffee, é preciso algum anestésico para suportar a (re)ve(lação) proposta pelo family name e pelo verbo to bloom, que as almas ingênuas traduzem por desabrochar, abrir em flor, florescer, deixar de esconder, revelar. Nesses (des)vãos que surgem dentro da linguagem também significa outra coisa, um ato menos público, menos óbvio, mais sacana, mais libertador. Libertino, evidentemente. Assim como as flores jorram o pólen nesse jardim fecundado com terra e o sangue seminal de Urano, aquele que foi castrado por Cronos, o tempo, também há um jorrar literário, emocional, sobre as páginas em branco do livro, pois que ao fim e ao cabo desses destroços que são jogados diariamente na lata de lixo da História, a literatura nunca passou de masturbação, nunca foi mais do que o jorrar esperma sobre a terra infértil.


Leopold Bloom, poor Leopoldo, não passa de um corno manso, manso corno, desses que gostam de polir os chifres em público. Sua esposa, Molly, andava a dar mole, molinho, molinha, bem gostoso, bem gozoso, para Blazes Boylan, um personagem−sombra, desses que nem sequer aparecem em cena, apesar de sua importância no enredo. Foi com o amante que aprendeu a gozar, a gostar de gozar com o pau alheio, mais especificamente com o do amante, que não era o seu, a natureza não lhe deu um, mas do ponto de vista legal podia dispor, por, alocar o do marido, embora não estivesse interessada, preferia o outro, aquele que a fez ver estrelas e sinos, soma de todas as imagens agregadas ao orgasmo múltiplo, simultâneo, que se espera obter quando os corpos se completam, a língua devorando a língua do amante, beijos carnívoros, lábios que se t(r)ocam, enlevados pela música de câmara, poesia pura, a boca cheia com a porra do amante, diamante, brilho fugaz, full gás, depois do sexo, a tristeza, o voltar para casa, para o tédio, marido é não−solução para esse rima pobre, pouco nobre.   

E é disso que o livro trata, destrata, tratado de muitas convenções, acordo diplomático, melodramático, coisa para inglês ver, que a Irlanda não pode ser dissociada do Império Britânico, a força das armas impondo o God Save the Queen como música tema do reinado de Vitória. E é disso que o livro trata, retrata, retrato pendurado na parede, imagem carcomida pelo bolor de Dublin, um pesadelo do qual estou tentando despertar, como diz Stephen Dedalus, numa daquelas aulas chatas do colégio católico.

O dia 16 de junho é e não é, sendo o que pode ser ao não−ser, truques da linguagem, palavras−valises, essas que (des)carregam outros sentidos, cinco são insuficientes para contar, descontar, recontar, recortar uma boa história, mito grego re(e)scrito, prescrito, proscrito, pós−escrito pelos enganos diários. Helenizar o texto, trazer para perto a civilização mi(s)tica, o herói grego, rei da astúcia, aquele que sempre pensa antes de agir, que não dá o passo em falso, que induz o inimigo ao erro, que constrói cavalo de madeira e o oferece aos deuses no portão central da cidade. Tolo é quem acredita nos gregos, aceita presentes, pega o que está ao alcance da mão, não desconfia das ratoeiras espalhadas pelo chão.        

Enjoy Joyce, ballet de palavras, os trocadilhos trocando de ilhas, construindo barcos entre um atracadouro e outro, entre o porto e a porta do quarto, aquela que está escancarada, aquela que permite que a voz da mulher delirante se projete no espaço, a gritar sim, sim eu disse sim eu quero Sim, muitos sins, pecados na língua inglesa, monólogos da vagina, imagina a cena, e nós, os fãs de Ulisses e de James Joyce, a imaginar a história centenas de vezes, algumas diretamente no texto, outras ao ler algumas das cartas que James escreveu para Nora Barnacle, seu único amor, a mulher que fez por merecer essas quatro letras malditas. Durante algum tempo, em 1909, eles estiveram afastados, ele em Dublin, ela em Trieste, o papel e a caneta substituindo o desejo, ensejo de uma festa que só se realizou depois, muitos meses depois, quando caralho e buceta se completaram, encaixe perfeito.   

Ulisses foi publicado pela primeira vez em 1922, propositalmente lançado no dia 02 de fevereiro, aniversário do autor, edição francesa, ironias passeando impunemente pela literatura, nada é mais divertido que saber que o livro de um irlandês foi financiado por uma americana, Silvia Beach, a praia onde encalhou o volume, e publicado em França por um impressor de Dijon, cheio de erros de impressão, desses que passam décadas sem conserto. Como "plus", logo depois, o concerto joyceano foi proibido na Inglaterra e nos Estados Unidos, a repressão, como sempre, sentando o pau na obra, a famosa brochada moralista, a pior delas, porque não permite a desculpa clássica: Desculpe−me, isso nunca aconteceu antes! A repressão acontece sempre, em cada esquina mora um filho−da−puta, sem ofensa às prostitutas, que ganham o pão delas de cada dia numa atividade tão desonesta como outra qualquer. A acusação ainda ecoa na atualidade, o livro está cheio de "sujeiras", descrições sexuais, coisas feias, aquelas nojeiras que a gente só faz, quando faz, dentro do quarto, porta fechada, luz apagada, medo que alguém veja e nos conte como é delicioso.   


O retrato do artista quando jovem não exige muitas pinceladas. No intervalo entre 02 de fevereiro de 1882 e 13 de janeiro de 1941, Sunny Jim, ensolarado Jim, que muitas vezes se referiu a si mesmo como James Joyless, James sem−alegria, foi protagonista de um turbilhão de acontecimentos. Era um homem alto, magro, que tinha medo de cachorros e trovões. Segundo filho de uma ninhada de dezessete, dez sobreviventes, a mãe morrendo logo depois do último parto. Estudou em colégio jesuíta e logo percebeu que pecar era o destino dos homens e das mulheres. Freqüentava bordéis, bebia em quantidade. Leu "tudo" antes dos vinte anos. Conseguiu, com distinção, um diploma universitário (línguas modernas), iniciou o curso de medicina, que abandonou por falta de dinheiro (e de talento). Quando conheceu Nora Barnacle, em 1904, mudou de vida, que homem consegue resistir a uma mulher que lhe abre a braguilha, e com carícias, como ele mesmo escreveu, faz dele um homem? Juntos o resto da vida, só casaram em 1931. Tiveram dois filhos, Georgio e Lucia. Assistiu o enlouquecimento da filha, viu os seus livros empilhados em um depósito, sem leitores, ficou cego ao final da vida. De uma forma ou de outra, algumas tangenciando a desonestidade, isto é, o exercício do explorar impiedosamente os amigos e as pessoas que se encantavam com seu talento, conseguiu sobreviver ao inimigo que o atormentou a vida inteira: a falta de dinheiro.

Joyce é o porco−espinho dos escritores, escreveu Richard Ellmann, na famosa e fabulosa biografia, 997 páginas para contar os quase 59 anos de vida do autor de Ulisses. Diz o biógrafo: Seus heróis são heróis ressentidos – o jovem ressentido, o adulto passivo, o barba−grisalha que bebe uísque. É difícil gostar deles, mais difícil ainda admirá−los. Joyce prefere que seja assim. Simpatia inequívoca seria romancear. Ele desnuda o homem daquilo que estamos a respeitar, depois nos convida a simpatizar com ele. Para Joyce, como para Sócrates, compreender é uma luta, melhor ainda quando humilhante. Podemos nos aproximar mais dele calando os obstáculos de nossas pretensões, mas quando o fazemos ele novamente exige toda nossa coragem com sua linguagem complicada. Exige que nos adaptemos na forma como no conteúdo a seu novo ponto de vista. Seus heróis não são fáceis de se gostar, seus livros não são fáceis de ler. Ele não deseja conquistar−nos, mas que nós o conquistemos. Em outras palavras, não há convites, mas a porta está entreaberta.  

Entreaberta está a literatura depois desse vendaval. Dizem alguns tolos que o Ulisses foi o romance que acabou com todos os romances, esquecendo que o material, a matéria−prima, para essa expressão artística, para esse retrato falso, é a vida. Dizer que não há mais espaço para o romance é o mesmo que dizer que a vida foi extinta. Enquanto houver tinta e imaginação, haverá romances – novas epopéias, velhos heróis, a melancolia do corno a iluminar com novas cores o velho cenário.  É o que o poor Jim (en)canta em todos os (en)cantos, neste 16 de junho.

(Texto escrito especialmente para o Bloomsday, em Lages, 16 de junho de 2011).