quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ACORDE-ME QUANDO SETEMBRO TERMINAR




Os atos sórdidos que os seres humanos cometem uns contra os outros não são meras aberrações – são parte essencial daquilo que somos.  (Paul Auster: Homem no escuro)


1. INTRODUÇÃO

No dia 11 de setembro de 2001, ocorreu o seqüestro de quatro aeronaves de passageiros: duas se chocaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Yorque, a terceira atingiu o Pentágono, em Arlington (Virgínia), e a quarta caiu próxima de Shanksville (Pensilvânia), depois que alguns passageiros e tripulantes tentaram retomar o controle. Não houve sobreviventes nos quatro seqüestros. As investigações oficiais contabilizaram 2.996 mortos. Esa é a imagem residual de que sempre nos lembraremos.

Uma das conseqüências imediatas dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 foi que parte da literatura ficcional ocidental (especialmente a estadunidense e a inglesa) tentou se apropriar do real.

O real deve ser entendido, literariamente, como a forma estética que fornece legitimidade à representação e à experiência da realidade, embora seja necessário entender, como explica Beatriz Jaguaribe, que "o paradoxo do realismo consiste em inventar ficções que parecem realidades".

A pretensão de emoldurar o real em um projeto literário resultou em dezenas de romances, contos e poemas – todos unidos por uma proposta ambiciosa: ultrapassar a transcrição ficcional. Para alguns autores, o caminho para executar essa tarefa implica em abusar da verossimilhança ou de aventuras próximas dessa maneira de manejar o constructo socio­cultural e político.

Tentando encontrar novas versões para histórias que sirvam de referencial para interpretar a tragédia, o discurso literário − gerado pelos acontecimentos relacionados com o 11 de setembro − procurou/procura abrigar em suas páginas as diversas maneiras de discutir o descompasso causado pela intolerância humana.
Alternando o ponto de vista das vítimas com a ótica do oprimido, identificando os elementos ideológicos e as reações contrárias, reconstruindo ficcionalmente os acontecimentos físicos e psicológicos (muitas vezes tangenciando a invenção biográfica), fornecendo visibilidade para o entorno (político, social, econômico, militar, religioso,...) e explorando (em algumas circunstâncias, de forma exagerada) os sentimentos mais dolorosos, esse projeto literário também se detém nas relações assimétricas que separam o Ocidente do Oriente.

Como um divisor de águas, a comunidade internacional reconheceu no 11 de setembro um momento significativo da modernidade: em lugar da diplomacia, do entendimento entre as partes, é o conflito que define o mundo competitivo, eficiente e excludente que o capitalismo incentiva. Em outras palavras, a modernidade tecnológica está conectada com a ética do combate, da eliminação sem piedade ou análise, daquilo que é problema. Por analogia, a destruição do que é antagônico, adversário ou inimigo.

Nesse tom, o choque de civilizações (conceito formulado por Samuel Huntington) evidencia a dificuldade em encontrar o equilíbrio necessário para resolver as questões fundamentais da contemporaneidade: governos autoritários, ganância econômica, restrições religiosas e comportamentais, negação da História e dos avanços científicos, intransigência com a diversidade (política, religiosa, cultural, sexual,...).


2. MARCO ZERO

No "sussurro de um vendaval em formação", Kurtz, um personagem literário sempre lembrado em situações extremas, não precisou de muitas palavras para relatar a catástrofe: "O horror! O horror!". Em sintonia com a perplexidade e o pânico, a agressividade resultante dos acontecimentos de 11 de setembro falou mais. Muito mais. E mais alto.

A transmissão pela televisão, em tempo real, do ataque contra a segunda torre do World Trade Center comprovou, como enfatiza Susan Sontag, a "teleintimidade com a morte e a destruição" que caracteriza determinado segmento da sociedade estadunidense. O ataque aéreo evidenciou que a propaganda ideológica é constituída por efeitos visuais e ausência de substância. E foi nas labaredas produzidas pela gasolina dos aviões que, para usar uma expressão de Jean Baudrillard, o Power inferno destruiu o Paraíso mítico − idealizado para que o prazer e a felicidade fossem oferecidos como mercadorias ideológicas.

"A indescritível e horrenda mutilação do ser humano", como assinala Susan Sontag, está visível nos ferros retorcidos das duas torres em chamas. Laurence Wright, analisando as ruínas da tragédia, lembra a "água [que] jorrava do teto, criando poças no chão de mármore (...), [as] pessoas [que] começaram a se atirar pelas janelas da torre norte, acima do combustível em chamas", a fumaça e poeira ("uma mistura de concreto, asbesto, chumbo, fibra de vidro, papel, algodão, combustível de jato e restos orgânicos pulverizados das 2749 pessoas mortas"). Esses destroços destroem quaisquer possibilidades de salvação.

O som intermitente das sirenes (ambulâncias, bombeiros, policia), os gritos desesperados (das vítimas, dos espectadores) e o show feérico das explosões compõem uma trilha sonora muito especial para a catástrofe.

A agressão dupla contra o World Trade Center, além dos dois outros seqüestros, atingiu o plexo solar do ego estadunidense, revelando a fragilidade, mostrando a vulnerabilidade. Conseqüência da ação furiosa do Outro – daquele a quem o contexto hegemônico sempre procurou negar o existir −, esse golpe no queixo na prepotência forneceu visibilidade para o percurso efetuado pela rachadura, desde a fissura ínfima até a fratura completa. Diante do poder de destruição oferecido pelo "excesso de realidade transformada em imagem", como assinala Susan Willis, através de obscena repetição (nos noticiários, nos documentários, nos filmes, na literatura, na Internet), a cultura narcisista estadunidense (eternamente sedada pelo patriotismo) precisou superar a perplexidade para se levantar do solo, onde fora jogada pela violência dos acontecimentos do 11 de setembro.

O escritor Colum McCann estava em seu apartamento em Manhattan, acompanhado da mulher e da filha, no momento que ocorreu o ataque às torres gêmeas. Quando esteve no Brasil em 2010, o jornalista Roberto Kaz, que o entrevistou, relatou em texto uma história impressionante: "Primeiro a tragédia lhe atingiu através da poeira – “Restos de concreto e sabe-se lá o quê” –, turvando as janelas de sua casa. Depois, pelo relato de seu sogro, sobrevivente do World Trade Center. “Minha filha, quando o viu, cheirando a queimado, começou a chorar, dizendo que o avô estava pegando fogo”, contou McCann. “Tentei explicar que era só a fumaça, mas ela disse que ele estava queimando de dentro para fora”. Ele percebeu que a frase, em princípio ingênua, poderia descrever o país."

Como conseqüência do que alguns analistas descreveram como um contato íntimo com a realidade, a política estadunidense precisou se adaptar a novo cenário – muito mais nacionalista, reacionário, dependente das estruturas policiais e militares (aparelhos ideológicos do Estado que, em situações de emergência, não apresentam diferenças substantivas).


3. CULTURA CAPITALISTA

O dia 11 de setembro deve ser lembrado como um dos grandes momentos da história do jornalismo − mais especificamente, do jornalismo televisivo. Na sociedade do controle de informações, onde nada escapa aos olhos (oniscientes, onipresentes, onipotentes) do Big Brother, os espectadores potenciais dos acontecimentos gerados no dia 11 de setembro foram privados da primeira parte da catástrofe (exceto por acaso ou em replay). Como compensação, a segunda colisão foi transmitida ao vivo e em cores.

O compromisso profissional de mostrar a notícia, no momento em que o fato está ocorrendo, ratificou a tese que a selvageria humana encontra no espetáculo midiático o seu espelho favorito. Manejadas como se fossem parte de uma espécie singular de reality show, as imagens oferecidas ao telespectador não contiveram esforços para manejar a dor. Parte do sucesso dessa estratégia foi obtido na mesa de edição, onde não houve economia na utilização de recursos técnicos para eliminar os ruídos. Sem necessitar de truques de videogames ou da violência gratuita dos filmes de ação, os noticiários televisivos, abastecidos por farto material sangrento, tiveram o cuidado de limpar as imagens – essa ação cosmética manteve apenas os elementos necessários para que o espectador compreendesse a dimensão do drama, mas não fosse exposto às suas imagens mais brutais.

Em outras palavras, ao adotar a estética de blockbuster hollywoodiano, os noticiários, intermediados pela câmera, possibilitaram que o olhar incrédulo do espectador deslizasse pela tragédia até encontrar o lugar onde os sentidos e os sentimentos se encontram. O voyerismo é sócio da crueldade.

Há o choque dos aviões contra as torres, há os esforços de socorro às vítimas, mas (com exceção dos desesperados que se jogaram das torres em chamas) os mortos estão ausentes. Foi essa forma repleta de pudor deslocado, similar a um filme pornográfico soft, onde as imagens provocativas substituem as imagens reais, que a mídia estabeleceu um vínculo identitário com os espectadores. Aproveitando a ataraxia produzida nos estadunidenses, entrou em cena o oportunismo da cultura do espetáculo e a excitação produzida pela violência. Esse conjunto de fatores contribuiu para esvaziar a substância crítica que estava embutida na ação política. Misturada com os espectros que deslizam pelas sombras, a história política e militar estadunidense foi soterrada por toneladas de ideologia conservadora.

Desta forma, o espectador ficou impossibilitado de distinguir o que é mais agressivo: o atentado contra as torres do World Trade Center ou a sua transmissão. Como a audiência televisiva está intimamente relacionada com o implemento da escala de impacto e dramaticidade – e, conseqüentemente, com o fluxo de inserções comerciais –, discutir se havia algum impedimento ético para (não) transmitir o atentado contra as torres gêmeas do World Trade Center estava fora de questão. Na análise de Susan Willis, somente os ingênuos discordam que, na sociedade capitalista, "o real é produzido como espetáculo pelos meios de comunicação". Além disso, diante da possibilidade de transmitir uma notícia (principalmente se envolver algum tipo de desastre), seguindo a lição de entretenimento oferecida pela Roma antiga (abrir a jaula dos leões e assistir ao massacre), Jacques Wainberg nos lembra que "os veículos de comunicação são chamados a cumprir o papel de disseminador do pânico nas situações em que o terror tem de ser transferido aos lares e às mentes das pessoas".

No romance Homem em queda, de Don DeLillo, as imagens transmitidas pela televisão descrevem esse comportamento de modo exemplar:


“Toda vez que via um vídeo dos aviões ela colocava o dedo sobre o botão de desligar do controle remoto. Então continuava assistindo. O segundo avião saindo daquele céu de um azul gélido, era essa a cena que penetrava o corpo, que parecia correr por baixo da pele, o instante fugaz que transportou vidas e histórias, dos outros e dela, de todos, para algum lugar distante, muito além das torres.
Os céus que a sua memória retinha eram cenários dramáticos de nuvens e tempestades marítimas, ou então de lampejo elétrico antes do trovão no verão da cidade, sempre um complexo de energias puramente naturais, o que havia lá em cima, massas de ar, vapor d’água, ventos. Aquilo era diferente, um céu límpido que transportava o terror humano naqueles aviões súbitos, primeiro um, depois o outro, a força da intenção humana. Ele assistiu junto com ela. Cada desespero impotente destacado contra o céu, vozes humanas clamando a Deus, e como era terrível imaginar isso, o nome de Deus na boca tanto dos assassinos quanto das vítimas, primeiro um avião, depois o outro, aquele era quase uma figura humana de desenho animado, com olhos e dentes reluzentes, o segundo avião, a torre sul.
Ele assistiu com ela apenas uma vez. Ela se deu conta de que jamais se sentira tão próxima de outra pessoa, vendo os aviões riscar o céu. Parado junto à parede, ele estendeu o braço em direção à cadeira dela e segurou-lhe a mão. Ela mordeu o lábio e ficou assistindo. Todos morreriam, passageiros e tripulantes, milhares nas torres, e ela sentia no corpo uma pausa profunda, e pensou ele está lá, por incrível que pareça, numa dessas torres, e agora a mão dele sobre a dela, naquela luz fraca, como se para consolá-la pela morte dele.
Disse ele: “Ainda parece um acidente, o primeiro. Mesmo visto dessa distância toda, bem longe da coisa, sei lá quantos dias depois, eu estou parado aqui pensando que é um acidente”.
“Porque tem que ser.”
“Tem que ser”, disse ele.
“O jeito que a câmara meio que demonstra surpresa.”
“Mas só o primeiro.”
“Só o primeiro”, ela repetiu.
“O segundo avião, quando o segundo avião aparece”, disse ele, “todos nós já estamos um pouco mais velhos e mais escolados.”

O horror multiplicado nas imagens televisivas, o primeiro avião, o segundo avião, as explosões, as torres caindo, integra o imaginário humano como excessos de verdades. E isso possibilita que sentimentos de negação se imponham na vida cotidiana: assombrada pelo curto-circuito emocional, a personagem Cayce Pollard, do romance Reconhecimento de padrões, de William Gibson, suspeitando que o seu pai estivesse entre as vítimas do ataque terrorista, adota uma medida extrema:

“E então ela havia caminhado até a sua casa, o caminho inteiro, até sua caverna silenciosa com seus pisos pintados de azul, e jogara na lixeira o software que lhe permitira ver a CNN em seu computador. Ela não vira mais televisão desde então, e nunca, se pudesse evitar, o noticiário”.

Provavelmente, no que se convencionou chamar de vida real, muitos estadunidenses também adotaram esse tipo de comportamento.



4. A TAREFA LITERÁRIA

Para competir com as imagens televisivas, em primeiro instante, e com as imagens do cinema, logo a seguir, a literatura precisou fazer esforço extra. Como lembra Beatriz Jaguaribe, o “nosso acesso ao real e à realidade somente se processa por meio de representações, narrativas e imagens”. Para obter esse efeito, a literatura estadunidense passou a utilizar continuamente a descrição, que era algo raro nas narrativas estadunidenses. A idéia, sempre presente, de escrever um pré−roteiro cinematográfico, onde diálogos e cenas de ação se alternam, foi revista. Inclusive nas revistas. Poucos escritores conseguiram descrever o 11 de setembro sem se deter nas imagens que estão gravadas na memória coletiva. Afinal, andar em círculos é uma das formas perversas de retro−alimentar o ódio. Ao mesmo tempo, o caminho mais fácil para atingir a verossimilhança está no entranhamento entre a escritura e o leitor.

Trabalhando com um das metáforas que caracterizam a redenção, o homem que emerge das ruínas, o romance Homem em queda, de Don DeLillo, procura acrescentar elementos que as imagens transmitidas pela televisão, por diversos motivos, soterraram nos destroços do World Trade Center:

"Era assim por toda parte ao seu redor, um carro meio submerso em escombros, janelas despedaçadas e ruídos saindo delas, vozes radiofônicas arranhando os destroços. Ele via pessoas correndo com água escorrendo delas, roupas e corpos encharcados por sprinklers. Havia sapatos abandonados na rua, bolsas e laptops, um homem sentado na calçada tossindo sangue. Copos de papel desciam a rua quicando, uma visão estranha.
O mundo era isto também, vultos em janelas a trezentos metros de altura, caindo no espaço vazio, e o fedor de combustível pegando fogo, e o grito constante das sirenes no ar. O barulho estava em todos os lugares para onde eles corriam, sons estratificados a se acumularem a seu redor, e ele ao mesmo tempo se afastava e mergulhava no barulho.
Então apareceu uma outra coisa, fora de tudo isso, sem fazer parte disso, no alto. Ele a viu descendo. Uma camisa descia da fumaça lá em cima, uma camisa subia e planava na luz escassa e depois voltava a cair, em direção ao rio.
Eles corriam e então paravam, alguns, e ficavam a oscilar, tentando respirar o ar escaldante, e aqui e ali exclamações de espanto, xingamentos e gritos perdidos, e a nuvem de papeis no ar, contratos, currículos passando, fragmentos intactos de transações comerciais voando no vento."

Coberto de poeira, cinzas e sangue, as roupas rasgadas, sujas de lama, pequenos estilhaços de vidro espalhando a dor pelo corpo, o personagem Keith Neudecker, um homem apanhado de surpresa pelo destino, "ouviu o ruído da segunda queda, ou sentiu-o no ar trêmulo, a torre norte desabando, o som suave de vozes abismadas ao longe. Era ele caindo, a torre norte". Desamparado (como se fosse um pára-quedista que mergulhou do alto das torres gêmeas e conseguiu pousar no meio dos destroços do edifício que se despedaçava enquanto ele estava planando), Keith sente que o seu corpo está contaminado pela morte. Então, movido por algo além de suas próprias forças, decide voltar para casa. Não para o lugar onde ele reside. Para aquele apartamento, no último andar de um prédio de tijolos vermelhos, onde viveu com a ex-esposa, Lianne, e o filho, Justin. Como se fosse alguma reinterpretação contemporânea do mito do filho pródigo, Keith procura por abrigo no território de confronto familiar. Sem avaliar se ainda lhe restava alguma coisa para perder, espécie tardia (fora de moda) do herói desamparado, ele assume uma posição ativa diante dos obstáculos emocionais: a reconstrução inicia nas ruínas.

Embora se refiram às mesmas ruínas, as imagens dos aviões se chocando contra as torres gêmeas anunciam outro tipo de tragédia, como lembra o personagem de Don DeLillo: "(...) toda vez que entrava no avião olhava para os rostos dos dois lados do corredor, tentando identificar o homem ou os homens que poderiam representar um perigo para todos". Depois da porta arrombada, a suspeita se instala, o inimigo surge em cada esquina, angústias desmembradas do corpo, intimidando, aterrorizando.

Para a comunidade muçulmana que vive em Londres, e que − mesmo antes do 11 de setembro − é vítima diária do preconceito e da discriminação, as imagens televisivas anunciaram outras ruínas, como tenta comprovar uma cena do romance Um lugar chamado Brick Lane, escrito pela inglesa, nascida em Bangladesh, Mônica Ali:

"– Rápido! Rápido! – ele grita –. Ligue a televisão.
Ele anda pela sala procurando o controle remoto, passando várias vezes pela televisão. Finalmente, ele aperta o botão que fica abaixo da tela – Meu Deus – ele diz. – O mundo enlouqueceu.
Nazneen olha para a tela. A televisão mostra um edifício alto contra um céu azul. Ela olha para o marido.
– Este é o começo da loucura – diz Chanu. Ele segura sua barriga como se estivesse com medo de que alguém pudesse roubá-la.
– Nazneen chega mais perto. Uma coluna grossa de fumaça preta está parada do lado de fora da torre. Ela parece pesada demais para estar ali parada. Um avião vem em câmera lenta do canto da tela. Ele parece estar voando no nível dos prédios. Nazneen acha melhor continuar trabalhando.
– Ó Deus – Chanu grita.
Nazneen se senta no sofá, com a mão na mancha brilhante onde o óleo do cabelo de Chanu se entranhou no tecido. A cena passa de novo. Chanu fica de cócoras com a barriga entre os joelhos e os braços em volta deles. A televisão o escravizou. Ele se balança num estado de excitação nervosa.
O avião está vindo de novo. A televisão mostra a mesma cena várias vezes.
Nazneen se inclina para a frente, tentando entender. Ela chega o corpo para a ponta do sofá. As palavras e frases se repetem e ela começa a compreendê-las. Chanu cobre o rosto com as mãos e olha por entre os dedos. Nazneen percebe que se inclinou tanto que está dobrada ao meio. Ela endireita o corpo. Ela pensa ter compreendido, mas pensa que pode estar enganada.
A cena muda. – O Pentágono – diz Chanu. – Você sabe o que é isso? É o Pentágono.
O avião chega e torna a chegar. Nazneen e Chanu ficam enfeitiçados por ele.
Agora eles vêem fumaça: uma coluna de fumaça, caindo. Nazneen e Chanu se levantam. Eles ficam em pé enquanto assistem uma segunda, uma terceira vez. A imagem é ao mesmo tempo hipnotizante e impenetrável; quanto mais é repetida, mais se torna obscura até que Nazneen sente que precisa sair daquele transe. Chanu mexe com os ombros, estende os braços e faz círculos com eles. Ele sopra com força. Não diz nada."

Diante do inominável, as palavras se mostram insuficientes. Apesar disso, um personagem secundário de Homem em queda elabora uma síntese macabra para os acontecimentos do 11 de setembro: "Cinzas e ossos. É o que resta dos planos de Deus".

Caminhando nessa mesma direção pessimista, o enredo do romance Windows on the World, do francês Frédéric Beigbeder, descreve a história do homem que leva os dois filhos do primeiro casamento (Jerry e David) para o “breakfast” no complexo de restaurantes Janelas para o mundo, localizado nos andares 106 e 107 da North Tower do World Trade Center.

Enquanto seus personagens encenam o horror que é encarar a morte, através de um ângulo particularmente agressivo, Beigbeder, um adepto do hiperrealismo, faz uma aposta bastante arriscada – o real de sua narrativa almeja ser maior (ou mais intenso) do que o real produzido pela História. Em outras palavras, Beigbeder preferiu ignorar que a ficção é, no máximo, representação do real – jamais será “o” real.

"Vocês conhecem o final: morre todo mundo. Claro, a morte acontece a um bocado de gente, cedo ou tarde. A originalidade desta história é que todos vão morrer ao mesmo tempo e no mesmo lugar. (...)
Daqui a um instante, no Windows on the World, uma roliça porto-riquenha vai começar a gritar. Um executivo de terno e gravata ficará boquiaberto. “Oh my God!” Dois colegas de escritório emudecerão de assombro. Um ruivo irá vociferar um “Holy shit!” A garçonete continuará a servir seu chá até a xícara transbordar. Há segundos que duram mais do que outros. Como se tivéssemos acabado de apertar a tecla “Pause” de um aparelho de DVD. Daqui a um instante, o tempo se tornará elástico. Todas essas pessoas finalmente irão se conhecer. Daqui a um instante, serão todos cavalheiros do Apocalipse, todos unidos no Fim do Mundo."

Com uma linguagem que flerta com o humor negro, e que se realimenta na repetição, o horror é descrito sem anestésicos, sem metáforas alienantes, inclusive porque, se “há segundos que duram mais do que outros”, parte da tarefa literária está no manipular desse tempo “congelado”.



5. HENRY PEROWNE E O INCÔMODO MIMÉTICO

A situação vivida por Henry Perowne, personagem do romance inglês Sábado (Ian McEwan, 2005), ciente de que, nas palavras de Slavoj Žižek, "a verdadeira catástrofe já é esta vida sob a sombra da ameaça permanente de uma catástrofe", reflete um sentimento que se tornou comum a todos aqueles que são herdeiros do 11 de setembro: perda da estabilidade política e psicológica.

Henry está em Londres, na janela de seu quarto, no início da manhã de 15 de fevereiro de 2003. Ao voltar para a cama, ouve um barulho ensurdecedor. "Olha para trás, sobre o ombro, na direção da janela, para confirmar". Vê uma bola de fogo no céu. Imagina que é um cometa. Estava enganado. Era um avião em chamas. Ao perceber que as certezas de Perowne estão se dissolvendo na angústia, o narrador remete a um grau de assombro desconhecido em outras épocas da humanidade: "A catástrofe observada de uma distância segura. Assistir à morte em larga escala, mas não ver ninguém morrer. Nenhum sangue, nenhum grito, nenhuma figura humana".


6. O QUE RESTOU

Dez anos depois do seqüestro das quatro aeronaves e da destruição das torres gêmeas do World Trade Center ainda é cedo para resumir os acontecimentos derivados do 11 de setembro. O espetáculo midiático do choque dos dois aviões contra as torres consegue, ainda hoje, apagar diversas questões.

A primeira delas, e que precisa ser lembrada diariamente, é que foram quatro os aviões seqüestrados. Quatro. Mas, há imagens de apenas dois. Como lembra Susan Sontag, "esse truque de ilusionista permite que as fotos sejam um registro objetivo e também um testemunho pessoal, tanto uma cópia ou uma transcrição fiel de um momento da realidade como uma interpretação dessa realidade". Entre as fotos e os vídeos conhecidos há interstícios que, por diversos motivos, não são considerados. Em um mundo onde a estética da vitimização se impõe, a memória não retém as mortes que não são documentadas.

Com a atribuição de culpa pelos ataques do 11 de setembro à comunidade muçulmana, restabeleceu−se o conceito de bipolaridade que havia desaparecido com a queda do Muro de Berlim. Mas com diferenças fundamentais. Fundamentalistas, para ser mais exato. Enquanto, nos anos 50, 60 e 70 do século passado, União Soviética e Estados Unidos competiam pela hegemonia ideológica, o que a nova guerra fria está nos mostrando é sintomaticamente diferente: de um lado, o Ocidente, a civilização, o progresso, o futuro, nós; do outro, o Oriente, a barbárie, o retrocesso, o passado, eles. Na luta entre adversários visivelmente desemparelhados, os interesses econômicos determinam os valores que regem essa dicotomia.

O 11 de setembro não é apenas o 11 de setembro. É muito mais. Como é de conhecimento de quem estuda História, figuras como Osama Bin Laden e Sadam Hussein não aparecem no horizonte político como exceção. Eles são a regra. E muitos são financiados pelo governo estadunidense. Enquanto são úteis, recebem dinheiro, armamento, treinamento e proteção. No momento em que ocorre mudança de objetivos, são transformados em criminosos. A política externa de Estados Unidos não é, e nunca foi, ética.

A invasão do Afeganistão, um país completamente insignificante, sem nenhuma infra−estrutura (a guerra com os russos alguns anos antes havia devastado o pais), não foi um ato de vingança contra o 11 de setembro: a luta por petróleo (e a expansão de um oleoduto russo) é um detalhe mais importante do que a morte de uma meia dúzia de soldados que moram em cavernas.

A alegação de que o Iraque estava fabricando armas de destruição em massa justificou a morte de centenas de milhares de civis. A nova frente de batalha do exército estadunidense foi um pretexto para se livrar de um ex−amigo que estava se tornando inconveniente. A moeda mais importante da modernidade não é o ouro, o euro ou o dólar, é o petróleo. Ao contrário da família real saudita, que se mostra dócil e submissa, Sadam Hussein tinha se tornando independente. E isso estava se tornando intolerável. Sadam Hussein precisava ser punido. Seguindo o raciocínio econômico, não há melhor maneira de ganhar dinheiro do que destruir um país, para, logo em seguida, reconstruí−lo. A maior potência militar do planeta também é a nação mais gananciosa.

Excrescências jurídicas como Guantánamo, o julgamento de Sadam Hussein no Iraque (deveria ser julgado pelo Tribunal Internacional, em Haia) e o assassinato de Osama Bin Laden colocam em dúvida o conceito de barbárie. Ou melhor, sobre quem são os bárbaros. O horror protagonizado na prisão de Abu Ghraib será lembrado como um dos mais significativos crimes de guerra da humanidade. E que, até o momento, está impune.

A tarefa da literatura é denunciar todas essas aberrações, todos esses crimes. E que, de uma forma ou de outra, esta sendo executada.



7. EPÍLOGO

Como todo e qualquer contato humano deixa um rastro de sangue, tudo o que se escreveu (ficção, depoimento, análise) a respeito do 11 de setembro, apesar de não revelar “a luminosidade de um amanhecer depois de uma vida inteira passada no escuro”, (como propõe o narrador de Um lugar chamado Brick Lane, de Mônica Ali), estabelece as bases para doloroso passeio sentimental entre os escombros que constituem aquilo que, em tempos remotos, foi chamado de civilização (metáfora apocalíptica levada às últimas conseqüências por Cormac McCarthy no romance A estrada).

Depois do 11 de setembro, o mundo ficou mais triste, mais paranóico, mais preconceituoso, menos humano.

Ao fundo, como se integrasse a trilha sonora que une corações e mentes com o som dos dois aviões se chocando contra as torres gêmeas, há o desespero daqueles que não conseguem esquecer os versos que a voz de Billie Joe Armstrong transformou em profecia: “Summer has come and passed / The innocent can never last / Wake me up when september ends”. ("O verão chegou e foi embora / O inocente nunca fica para trás / Acorde-me quando setembro acabar").



8. BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ALI, Mônica. Um lugar chamado Brick Lane. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
ARMSTRONG, Billie Joe; PRITCHARD, Michael; WRIGHT, Frank E. (Lyric composers). Wake me up when september ends. Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KjNJmwwf7QA. [Acesso em 05. mai. 2010].
AUSTER, Paul. O homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.
BEIGBEDER, Frédéric. Windows on the world. Rio de Janeiro: Record, 2005.
CONRAD, Joseph. O coração das trevas. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DeLILLO, Don. O homem em queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GOUREVITCH, Philip; MORRIS, Errol. Procedimento operacional padrão: uma história de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
KAZ, Roberto. Autor sobrepõe beleza à tragédia. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 Jun. 2010. Ilustrada. p. E9.
McCARTHY, Cormac. A estrada. Rio de Janeiro, Objetiva/Alfaguara, 2007.
McEWAN, Ian. Sábado. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
OATES, Joyce Carol. The mutants. Disponível em: http://toterbaum.blogspot.com/2005/03/mutants­by­joyce­carol­oates.html. [Acesso em 04 jan. 2011].
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
UPDIKE, John. O terrorista. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem−vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.
WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror: comunicação e violência política. São Paulo: Paulus, 2005.
WILLIS, Susan. Evidências do real: os Estados Unidos pós−11 de setembro. São Paulo: Boitempo, 2008.
WRIGHT, Lawrence. O vulto das torres: a Al-Qaeda e o caminho até o 11/9. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


(LAGES, SC, 12 de setembro de 2011. FACVEST)