sexta-feira, 1 de abril de 2011

MEU IRMÃO, MEU INIMIGO

Cenário: Rio de Janeiro. Enredo: irmãos gêmeos, de profissões e posições políticas diferentes, disputam o amor de mulher doente. Esta é uma história que se repete – embora muita gente não lembre exatamente onde a viu pela primeira vez.

Escondida atrás do aviso que consta de alguns livros ou filmes (“Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, localidades e incidentes são produtos da imaginação do autor ou são usados de forma ficcional. Qualquer semelhança com acontecimentos reais ou lugares, ou pessoas, vivas ou não, é mera coincidência”), uma das tramas paralelas da novela “Viver a vida”, da Rede Globo de Televisão, está centralizada na “reinterpretação” de um dos grandes temas humanos: a rivalidade fraterna. Embora o enfoque do triângulo amoroso Miguel, Luciana e Jorge não seja original, nem pretenda sê-lo, é interessante contrastá-lo com uma observação de Jean-François Lyotard: “As relações familiares são os lugares privilegiados da tragédia”.

Talvez pensando no poder explosivo (e, ao mesmo tempo, aglutinador) das tragédias, o autor da trama televisiva adota uma posição contraria ao famoso conselho da Consulesa Elizabeth Kröger Buddenbrook, personagem do romance “Os Buddenbrook”, de Thomas Mann, “É até possível que irmãos se odeiem e se desprezem; isso acontece, embora pareça horroroso. Mas não se fala nisso. Ninguém precisa saber dessas coisas”.

Ao mostrar o conflito entre os gêmeos de uma forma brutal, beirando o desagradável – como convém a um folhetim que almeja ser realista, quase fotográfico –, a trama televisiva, com um pé nas questões essenciais da modernidade, revela atrelamento com algumas “rupturas” (que não rompem com nada, embora estejam embrulhadas em papel para presente “diferenciado”). Como ninguém se engana com os interesses que movem a indústria televisiva, o objetivo maior da novela (de qualquer novela) é o índice de audiência – e isso explica, em parte, o porquê do clichê irmão bonzinho versus irmão malvado ter sido retirado de cena – a idéia é mostrar que os dois personagens são “humanos”, e isso quer dizer que são passíveis de falhas e de acertos. Unidos pela genética e separados por interesses divergentes, Miguel e Jorge, de forma ostensiva, ignoram o “Outro” e se utilizam do “amor” que sentem (ou que acreditam sentir) por Luciana para justificar ações que, em outras circunstâncias, seriam condenadas de forma veemente.

Como contraponto ao espetáculo apresentado na tela pequena, a literatura brasileira aborda a rivalidade fraterna entre gêmeos em dois grandes romances: Machado de Assis publicou “Esaú e Jacó” em 1904; Milton Hatoum retornou ao tema em 2000 com “Dois irmãos”.

Em “Esaú e Jacó”, os irmãos Pedro e Paulo são antagônicos desde o útero materno. Inteligentes, sabem que contrariar um ao outro pode render bons dividendos. Na infância, manipulam a família: “Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que deveria ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia, mas também satisfação de um desejo intimo, profundo, necessário”.

Como Machado de Assis (provavelmente influenciado por Thomas Hobbes) estava convicto de que os laços sociais não são resultantes dos afetos, mas existem apenas para tornar possível a convivência social, colocou na trama um personagem para “controlar” a rebeldia dos gêmeos. José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado, cavalheiro de “algumas virtudes e quase nenhum vício”, além de mentor dos rapazes, é também um esforçado professor da gentil arte da dissimulação (“... lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dois verbos parentes”). Sob a supervisão do Conselheiro Aires, Pedro e Paulo aprendem que a educação e as boas maneiras são a continuação da violência por outros meios e que quanto mais sutil for a forma com que se pratica a destruição do Outro, maior é o grau de civilização. Como o amor e o ódio são vasos comunicantes, o exercício pedagógico e socrático sofre um desvio: os gêmeos se apaixonam por Flora, típica donzela de narrativa romântica. A moça, embalada pela doce indecisão sobre a qual dos gêmeos entregaria a sua virtude, adoece, morre e deixa a todos na saudade. Desaparecido o objeto do desejo, os irmão sublimam a dor na política (na juventude, Pedro era monarquista; Paulo, republicano). Esse novo interesse mútuo proporciona combustível para outros confrontos, para reavivar velhas brigas – e para promover o entendimento.

No romance de Milton Hatoum, a gramática é de outra ordem. Yaqub e Omar, filhos de cristãos maronitas, moradores de Manaus, rompem com a farsa fraterna aos 13, 14 anos. Em uma sessão de cinema improvisada, uma pane no gerador elétrico resulta na abertura das janelas da sala. Omar vê Lívia beijando Yaqub. Tomado pela fúria, o Caçula quebra uma garrafa e, com caco de vidro, golpeia o irmão no rosto. Os pais dos gêmeos, sem saber como resolver o problema, enviam Yaqub ao Líbano. Durante os cinco anos em que passou no exílio, como em uma versão deturpada do mito do filho pródigo, o irmão mais velho foi privado do mundo familiar. Ao voltar ao Brasil, além da cicatriz no rosto, trazia no corpo e na mente as marcas do abandono. Ciente de que precisava construir um entorno afetivo que o protegesse, depois de concluir os estudos secundários, mudou-se para São Paulo. Casado com Lívia, estudou engenharia na Politécnica da USP.

Enquanto isso, em Manaus, no início dos anos 60, Omar metia-se em confusões, freqüentava bordéis, amanhecia na rua depois de bebedeiras intermináveis.

A incompatibilidade e o ódio entre os irmãos são semelhantes a meteoritos em rota de colisão. E se intensifica quando as questões ideológicas afloram. Na analise de Arthur Nestrovski, “Yaqub, por certo, não é o único descendente de libaneses formado na Escola Politécnica da USP, com vínculos com a ditadura e fazendo negócios escusos com empreiteiros”. Em contrapartida, destoando do hedonismo que pratica, Omar percebe que há algo de errado com o país. E, de uma maneira pouco ortodoxa, talvez consequente às lições que recebeu de seu amigo Antenor Laval, reage ao militarismo, à ordem e ao progresso.

Em resposta a uma carta que a mãe lhe enviara, pedindo tolerância, Yaqub escreve que “o atrito entre ele e Omar era um assunto dos dois, e acrescentou: “Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica”. Ao ameaçar reviver o episódio Caim e Abel, Yaqub confirma que o ressentimento e a cicatriz na face estão ardendo. Por outro lado, Omar, que nunca foi um adepto da sutileza, rompe com a trégua na primeira oportunidade: em uma das visitas que Yaqub faz a Manaus, ciente de que sangue é a única forma de pagamento que aceitará para diminuir o ódio que sente, dá uma surra no irmão. O troco não demora: acusado de conspirar contra o governo militar, Omar precisa fugir. Preso, é condenado a quase três anos de prisão.

O narrador dessa tragédia é Nael, filho de Domingas, a empregada. E um dos principais motivos da rivalidade fraterna: um dos gêmeos é o seu pai. Para o desenvolvimento narrativo, esse é um ponto crucial: enquanto Omar é egoísta demais para querer um filho, Yaqub é casado com uma mulher estéril. No jogo de contrastes entre o aparente e o escondido, e sem grandes expectativas de revelar os segredos que se escondem nas dobras familiares, Nael, ao relatar o drama familiar, emoldurada nos desdobramentos políticos dos anos 60, tenta evitar que o esquecimento tome conta do passado – mesmo nos momentos em que a história que está contando se mostra opressiva, violenta, pouco racional.


Seja entre filhos da pátria, seja entre irmãos (gêmeos ou não) que se odeiam, todo conflito fraterno é, guardadas as devidas proporções, uma forma de negar o “Outro”, de não aceitar o “Outro”, aquele que destoa da “normalidade”, pois é diferente, estranho, incômodo. No entender de Susan Sontag, “o outro, mesmo quando não se trata do inimigo, só é visto como alguém para ser visto e não como alguém (como nós) que também vê”. Para alguns segmentos sociais, aceitar que o Outro também consegue ver (as vezes melhor ou de forma mais acurada) e interagir no contexto, inclusive com posições divergentes, contribuí para ampliar o desconforto e o conflito.

A isso se acresce um dado particularmente aterrador. O ambiente familiar, na maioria dos casos, não está estruturado para entender as relações fraternas. Quando o assunto é o relacionamento afetivo entre os filhos, os pais raramente conseguem perceber sinais de turbulência. Em nome da “família”, toleram pequenas transgressões, incentivam a competitividade e ignoram que o perigo pode estar escondido em lugar bem visível. Esquecem que os filhos podem aprender a odiar – e que, por serem incapazes de aceitarem de forma natural a diversidade, inventam o inimigo. Na maioria das vezes, a paternidade/maternidade alimenta a fantasia de que os desentendimentos fraternos são jogos criados para passar o tempo, para diminuir o tédio. Assim como a Consulesa Buddenbrook, preferem esconder a sujeira debaixo do tapete; assim como o Conselheiro Aires, preferem mascarar os conflitos.

Enfim, a fraternidade é um campo de batalha, onde qualquer descuido detona minas, reaviva ressentimentos, coloca exércitos em marcha, destrói a estabilidade – e, em última análise, possibilita excelente material para os estudos literários (cinematográficos, teatrais, televisivos,...).

(TEXTO PUBLICADO EM ABRIL DE 2010, EM www.escritoresdosul.com.br)

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