sexta-feira, 1 de abril de 2011

CAIM E SARAMAGO OLHAM PARA O MUNDO

Toda vez que o gajo resolve aprontar alguma, desafinando o coro dos contentes, saem faíscas, raios e trovões – tempestades esfarelam a atmosfera outrora pacífica, coisa pequena, uns oito pontos na escala Richter, nada que a mothernidade não consiga agüentar, viver no século XXI é para os fortes (e para os fracos).

Mas, tropeçando aqui ou ali, José, também conhecido como Saramago, é uma pessoa singular, modelo de bondade, como se fosse o equivalente humano dos pandas, modelo de agressividade, como se fosse uma representação dos ursos cinzentos. Comunista por opção, ateu convicto, escritor do primeiro time, intelectual, humanista, para surpresa geral, depois de ter publicado uma obra-prima (“A viagem do elefante”), Saramago voltou à carga com “Caim”. Será que esse cara não descansa? Ou está a fazer hora, antes do “descanso final”?

Por certo, depois que os analfabetos funcionais (e religiosos) conseguirem ler (ou colorir) as 172 páginas da versão publicada deste lado do oceano, haverá manifestações maléficas – por conta dos que detestaram. Por errado, depois de se divertirem à larga com a pilhéria, alguns fãs queimarão fogos chineses.

Além disso, sem economizar emoção, sem esconder o rosto, sem medo da vida ou da morte, Saramago, através de “Caim”, fez questão de mandar ao mundo literário (e religioso) um imenso phoda-se (“com pê agá e dois dês de toddy”, segundo a alegria alcoólica do Aldir Blanc). Aos 87 anos, chama de lampião a se extinguir por falta de querosene, o escritor continua a manifestar que levará o desentendimento que mantém com deus para a eternidade – se houver essa tal de eternidade. Talvez esteja ai o motivo de ter tornado pública a sua última bravura (bravata também é bom adjetivo). Em ritmo de farra, nesses tempos em que poucas coisas parecem ter alguma importância (descontadas as sujeiras da política, as relações espúrias de produção e consumo, os rituais da barbárie), o Saramago fez questão de esclarecer que ainda sabe brincar, que ainda sente vontade de puxar o rabo do gato só para ver o tamanho do miado.

Pois é, o pandego portuga escreve como gente grande, muitos aprendizes – quando crescerem – gostariam de ser igualzinho a ele, a possibilidade de escolher com denodo e talento verbos, substantivos e conjunções em tal ordem que só restará ao leitor esboçar um sorriso maroto, aplauso sem som, o reconhecimento de que a pena é mais poderosa que a espada (como balbuciou aquele sujeito ao sentir que a lâmina estava atravessando o seu estômago).

Saramago nasceu lá nos confins do Ribatejo, quase que ninguém encontra aquele fim de mundo nas garatujas cartográficas, tão longe fica, e que sequer seria lembrado se ele lá não tivesse sido depositado pela cegonha, perdão, se os genitores, em doces agarramentos papai-e-mamãe ou “dog style”, não houvessem fornicado à grande e de tal modo que, segundo os princípios elementares da biologia, outro resultado não poderia ocorrer (quer dizer, se olharmos para a tradição religiosa, não é possível excluir a participação do arcanjo Gabriel – ou do açougueiro – na confecção do infante. É para dirimir estas questiúnculas que a ciência evoluiu, dá-lhe exame de DNA e interrogatórios em Abu Ghraib, a verdade há de aparecer a qualquer minuto – embora saiba aquele outro José, o marido fiel da “virgem” Maria, “pai é quem cria”).

Tão logo Saramago viu-se senhor de si neste mundo imenso, cheio de salamaleques e vaidades vãs, foi logo agarrando a oportunidade, não se deve brincar em serviço, pois, que chato, alguns serviços não são brincadeiras, foi logo despejando uma série de impropérios contra esse senhor vingativo e impiedoso que os tolos chamam de deus. Distribuídas pelos livros que escreveu, um pouco mais aqui, um pouco menos ali, as acusações são interessantes, algumas clamam por boas gargalhadas, outras, conseqüência de ranço doutrinário político, permitem, no máximo, uma aquiescência branda, coisa de quem não quer perder o amigo por motivo frívolo.

“Caim” é um romance simples, quase linear, de vez em quando o narrador intrometido aparece para dar algum palpite, uma observação maldosa, uma alfinetada, nada muito sério, nada que tire (muito) sangue, anedotas estão espalhadas pelas páginas do texto, quem procurar encontrará, talvez ali ao lado, em alguma frase despretensiosa, talvez lá, lá onde somente os que dominam os artifícios da tecnologia de ponta podem localizar.

Desconstruindo o gênesis, livro inicial da mitologia católica, Saramago sente prazer em tocar – com força – a ferida, o dedo a cutucar exatamente onde dói mais. Por isso, com paciência, com determinação, vai construindo “uma espécie de palácio rústico de dois pisos, nada que se pareça a mafra, a versalhes ou buckingham, em que se afadigam dezenas de pedreiros e ajudas, estes carregando adobes às costas, aqueles assentando-os em fieiras regulares”. Na primeira parte da edificação está o firme propósito de se opor ao catolicismo, ao cristianismo, aos cultos incultos da religião, a esse senhor, deus, que “não suporta ver uma pessoa feliz” e freqüentemente abandona os seus filhos ao deus-dará. Na segunda, temos o percurso histórico, sátira pontilhada por referências aos contos da carochinha, um mais tolo do que o outro, pois é fácil “comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar”, basta lembrar a sandice que foi mandar Abraão, “tão filho da puta como o senhor”, imolar Isaac, transformando o menino em cordeiro, pois, como já havia sido comprovado anteriormente no episódio Caim e Abel, deus é carnívoro, detesta dietas vegetarianas. “Santo sacrilégio, Batman!”, disse, ou melhor, não disse, entre dentes, Saramago, sabedor que ele, Saramago, jamais deixaria escapar esse tipo de citação pop, mácula capaz de estragar a reputação do velho comunista, homem sério, sóbrio, escondido atrás daqueles óculos fora de moda, sempre pronto a disparar uma frase marxista bem calibrada.

Seguindo um conceito democrático (tratar mal a todos, indistintamente), Saramago promove em seus romances um oceano de vírgulas, ondas a espera do surfista (ou do leitor) que tenha fôlego e capacidade para extrair beleza do que é, a primeira vista, apenas perigo. Além disso, para não perder a mão herética, grafa os nomes de todas as personagens em minúsculas, como se continuasse, por conta própria, uma daquelas brincadeiras elaboradas pelo e. e. cummings (outra raridade, cromo carimbado e assinado, o pedal da bicicleta, poeta/poema a nos presentear com a sensação, digo, com a angústia de que nunca, nunca, conseguiremos completar o álbum de figurinhas).

Da mesma forma que Prometeu (ou Harry Potter), aquele que escreve precisa, de uma forma ou de outra, conviver e/ou esconder a marca na testa, vingança inequívoca do apetite desse deus que se diverte torturando os habitantes da terra. Errante, o escritor viaja pelo mundo (seja real, seja inventado), contando histórias, intercambiando experiências (como escreveu o Walter Benjamin), tentando, de acordo com as suas poucas possibilidades, desrespeitar o sagrado, triturar os dogmas, transformar o amargor em piada, distinguir a vida com um pouco de criação artística. Nesse sentido, como se fosse um herói sem pátria, Caim, a bordo de um “vulgar jerico e sem guia michelin”, transita por algumas passagens/paragens do mundo bíblico, para, entre tantas coisas, descobrir que “a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês crêem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina, nem sempre se pode ir direto aos fins”.

Comprovado que deus não possui todos os poderes que se imagina, Caim, nas páginas finais do livro, passageiro da arca de Noé, aposta em um novo apocalipse. A possibilidade de extinção da vida é, segundo os parâmetros políticos, um ato ingênuo, rebeldia adolescente, pois deus, se assim lhe apetecer, há-de criar novo ciclo humano. De qualquer forma, seja pelo anarquismo de Caim, seja pela prepotência divina, o aviso é inequívoco: “memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” (lembra-te, homem, de que és pó e ao pó voltarás).

(TEXTO PUBLICADO EM DEZEMBRO DE 2009, EM http://www.escritoresdosul.com.br/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário