sexta-feira, 25 de março de 2011

PORNOGRAFIA, EROTISMO E OUTRAS SACANAGENS (bisbilhotando a sexualidade feminina na literatura brasileira do século XXI)

A literatura (e a vida, em geral) encontra um significativo impasse nas distinções básicas entre pornografia, erotismo e narrativas com conteúdo sexual. Embora essas classificações sejam fluídas (muitas vezes dependentes do sistema ideológico e cultural dominante e/ou de observações subjetivas – o que significa algum tipo de vínculo com as distorções produzidas pela história pessoal de cada leitor), surpreende constatar que a ignorância supera o esclarecimento.

Luisa Coelho, no prefácio que escreveu para o livro “Intimidades”, que reúne contos de cinco portuguesas e cinco brasileiras, adota critérios clássicos para definir pornografia e erotismo: “O discurso pornográfico é aquele que torna o ato sexual transparente, revelando aquilo que na sexualidade do dia-a-dia é invisível, numa estética hiper-realista, onde as cenas descritas são mais reais que o próprio real (acumulando uma grande quantidade de sinais que acabam por afastar a realidade), e em que o sexo surge sem relação com o sujeito, sem intimidade e sem alteridade”.

Defendendo que o discurso erótico faz “uma representação verbal mais completa de Eros, com todos os seus componentes, e não apenas como uma exploração grosseira e gratuita da libido”, Luisa Lobo mostra que existe uma preocupação literária crescente para que o olhar feminino remova parte da camada de pó que está assentada sobre a literatura. Ao promover um novo foco de análise, uma maneira menos óbvia de compreender e expressar as emoções, o feminino, além de libertar a literatura de algumas de suas amarras mais fortes, coloca em xeque uma questão cultural não resolvida: os homens acreditam, inclusive por razões históricas, ter o poder de expressar qualquer opinião sem criar escândalos, além de insistirem, de forma veemente, que a pornografia e o erotismo estão adstritos ao território masculino – e isso significa que ficam “constrangidos” quando a voz com carga libidinal mais intensa é a feminina. Seja por uma questão de disputa de poder, seja por inveja (da vagina ou do poder da palavra?), o masculino sucumbe ao velho fantasma fascista e não mede esforços para sublimar as vozes menos pudicas através de rótulos expressivos, pejorativos, pouco amistosos.

Ainda no plano teórico, uma das melhores distinções sobre o tema foi publicada, nos anos 80, na revista “Primeiro toque”, da Editora Brasiliense: “erótico é tudo que excita; pornográfico é tudo o que assusta”. Entre o que assusta e o que excita corre um filete muito tênue (como comprovam as narrativas góticas e os filmes de terror), mas a vida é assim mesmo, um pouco estranha, quase contraditória, muito confusa, agradavelmente complicada.

De qualquer forma, como um adendo a este tipo de pensamento, cabe lembrar que as narrativas rotuladas como pornográficas, obscenas, licenciosas, fesceninas e eróticas estão proibidas de freqüentar as “altas literaturas”. Com as famosas exceções de sempre (Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de uns dois ou três outros pornógrafos eméritos), a tendência geral é a de se considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não-verbais de caráter sexual.

A literatura brasileira, encharcada pela água e o vinho do catolicismo, também prima pela adoção desse sistema de valores. E isso, muitas vezes resulta em grandes contradições, em equívocos lamentáveis e em gargalhadas muito saborosas. Uma situação muito interessante está no fato de que, atualmente, não existe mais espaço para “marchas por deus, pela pátria e pela família”, onde eram exorcizados os demônios mais perigosos, mais tentadores. Em lugar desses rituais públicos de contrição e fervor espiritual, a modernidade adotou como mascotes, uma quantidade assustadora de aprendizes de pastores evangélicos, que, em maior ou menor grau, sempre estão dispostos a proclamar que a pornografia é o equivalente ao fim dos tempos.

Sem entrar no mérito de quem considera os “catecismos” do Carlos Zéfiro uma representação de Sodoma e Gomorra, sem esquecer que algumas mulheres sempre escreveram sobre o erotismo (ver, entre tantos, “A casa da paixão”, de Nélida Piñon, ou “Sudário”, de Guiomar de Grammont), não é possível ignorar que esse tipo de interpretação possibilita o surgimento de uma “sacanagem” muito divertida: o rótulo “pornografia” como um trampolim para (in)certas “celebridades instantâneas”. Um exemplo clássico, na linha escândalo moderado, imitação barata de “Na cama com Madonna”, foi protagonizado pela cantora Syang (quem?), que publicou, em 2003, “No cio”, um livro de contos eróticos. Apesar do título provocativo e da cara-de-pau, a moça não teve o reconhecimento público que sonhava. E isso ocorreu, provavelmente, por um pequeno detalhe: Syang escreve muito mal.

Em oposição, o livro/depoimento “O doce veneno do escorpião”, “escrito” por Bruna Surfistinha, pode ser considerado um best-seller – e, para espanto geral, a sua versão cinematográfica não será um pornô hard-core, mas um filméco “família”! Elaborada inicialmente em um blog da Internet, a narrativa contou com a ajuda de um jornalista, que a transformou em livro. E o livro se transformou em sucesso comercial. Com uma linguagem acessível aos fãs do sexo manual, a ex-garota-de-programas alterna descrições gráficas bastante verossímeis de sua vida pessoal e profissional. Sem alimentar a ilusão de que, ao final de cada noite, vai encontrar o príncipe encantado e ciente de que caiu na “maioria das armadilhas do mundo”, Bruna não quis escrever um manual sobre o aprendizado sexual ou qualquer coisa do gênero (embora cometa o pecado de dar algumas dicas). Sabe que uma história de vida vale pelo que apresenta e não pelo que ambiciona representar. No teatro que constituí o mundo “real”, poucos têm talento para representar o mundo real.

De qualquer maneira, com centenas de problemas de estrutura, inclusive o infindável número de lugares-comuns, há algo de bom no livro de Bruna Surfistinha: sem se deter em análises sociológicas ou puritanas (apesar de, em um recurso que beira a ingenuidade mais medíocre, nomear as áreas sexuais apenas com a letra inicial da palavra, seguida de reticências), descreve a falta de glamour do mundo da prostituição. Simultaneamente, reafirma em diversos momentos que a existência humana precisa estar sintonizada com a diversão e o prazer. Esse movimento de adensamento entre a experiência concreta e a negação da ilusão romântica é o que faz de “O doce veneno do escorpião” um livro interessante. Ruim, mas interessante.

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As narrativas ficcionais femininas que, de uma forma ou de outra, descrevem um pouco da vida sexual das mulheres estão se multiplicando, algumas assim assim, outras um pouco piores. Exemplos não faltam: “Meus queridos cavalheiros” (Sonia Manski), “Amadora” (Ana Ferreira) e “A dama da solidão” (Paula Parisot) são boas leituras sobre o assunto. Mas, sem negar a qualidade de outras narrativas, duas merecem ser destacadas em separado. Em “A vida sexual da mulher feia” (Claudia Tajes), o poder corrosivo do humor destrói todos os fetiches sexuais, todos os sonhos românticos. Embora a narrativa seja muito engraçada, também é muito triste – há um quê de piedade excessiva que faz mal ao leitor nesse jogo-de-gato-e-rato que é a procura de parceiro(s).

“ Calcinhas no varal” (Sabina Anzuategui) tem proposta diferente: mostrar o horror em sua forma mais primitiva, o amor. Embora haja certa semelhança com textos mais desesperados (e lembrar “Quarta-feira de cinzas”, do Ethan Hawke, não é exagero), o texto de Sabina mergulha naquele ambiente em que a mulher se submete aos caprichos sexuais do amante, ato de submissão que traz em si o desapontamento, a insatisfação, a perda do prazer. Belo texto.


(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM NOVEMBRO DE 2009, em http://www.escritoresdosul.com.br/)

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