quarta-feira, 2 de março de 2011

IGNORANDO A PAISAGEM: considerações sobre María Teresa Cornejo, personagem do romance “Ciências Morais”, de Martín Kohan

Antigamente este colégio, o Colégio Nacional, foi só masculino. Nesses tempos já distantes, os tempos do Colégio de Ciências Morais, para não falar dos mais remotos do Real Colégio de São Carlos, as coisas eram, por necessidade, mais claras e mais ordenadas. É simples: faltava nem mais nem menos que a metade deste mundo que agora o integra. Essa metade feita de jumpers, de faixas de cabelos, essa metade feita de tiaras e fivelas, essa metade que requereu a instalação de banheiros à parte no colégio e vestuários à parte na quadra esportiva, antes, muito antes, nos tempos de Miguel Cané, nos tempos do professor Amadeo Jacques, simplesmente não existia. O colégio era todo uma mesma coisa, era todo de meninos. Então, com toda a certeza, as atividades transcorriam de maneira mais sossegada, (...).1


Com essas reflexões quase distraídas, Maria Teresa Cornejo, personagem do romance Ciências Morais, escrito pelo argentino Martín Kohan,2 contempla os alunos sob sua supervisão. Dividindo o mundo escolar entre o passado e o presente, entre o pioneirismo do macho e os avanços da modernidade, que impuseram as meninas como “metade” do mundo, María Teresa parece não estar conectada com um fato elementar: ela, bedel da turma 10 da oitava série, é uma mulher em um mundo que há muito tempo deixou de ser exclusivamente masculino.   
Sylvia Colombo, quando do lançamento do romance no Brasil, observou que María Teresa cumpria resignadamente ordens dos superiores, inspecionava o asseio e o comportamento dos alunos e não se interessava por política.3 Ou seja, María Teresa é uma mulher submissa e politicamente alienada. Além disso, numa demonstração de dependência afetiva, econômica e social, mora com a mãe e o irmão (que está prestando serviço militar. Esporadicamente, Francisco manda cartões postais para a família.). 
Ignorando a geografia humana que a cerca, e que é composta pelo governo militar, pelas prisões políticas, pela guerra das Malvinas e pelas dificuldades econômicas da época, a vida de María Teresa está centrada em um objetivo simplório, quase cômico: coibir quaisquer infrações que possam ser, ou vir a ser, cometidas pelos estudantes do Colégio Nacional de Buenos Aires.
Para Edgardo Dobry, o Colégio Nacional é emblemático:

Não é qualquer escola, mas o Colégio Nacional de Buenos Aires, uma das instituições paradigmáticas da idiossincrasia portenha: instituição pública e elitista ao mesmo tempo, descendente do Real Colégio de São Carlos – a principal casa de estudos do breve Vice-Reinado do Rio da Prata –, que depois se chamou Colégio de Ciências Morais, próximo da Plaza de Mayo, e, portanto, da Catedral, do antigo Cabido e da atual Casa de Governo. O Colégio Nacional foi fundado por Bartolomeu Mitre, prócer militar e criador do jornal La Nación; nele estudaram vários dos políticos e escritores mais relevantes do país, como Manuel Belgrano, herói da independência, e Miguel Cané, que se refere ao colégio no seu Juvenilia (1884), o romance clássico argentino, cujo eco é explícito e paródico no livro de Kohan. 4 (tradução livre).

María Teresa, mesmo quando deixa o colégio e vai para casa, faz questão de ignorar a vida que existe fora dos muros do Colégio Nacional. Possuí apenas dois interesses: uma estranha e confusa ligação com Biasutto, o chefe dos bedéis, e a necessidade quase patológica de exercer as suas funções de disciplinadora escolar. Escorada na premissa de que o controle do corpo estudantil está conectado com a vigilância contínua e o castigo exemplar, Maria Teresa, suspeitando que um dos alunos esteve fumando durante o intervalo entre as aulas, sem muito raciocinar, se esconde em uma das cabinas do banheiro masculino e fica aguardando o momento em que, comprovado o crime, poderá punir rigorosamente o transgressor. Ouvindo os ruídos e respirando os odores expelidos pela masculinidade adolescente, María Teresa, em um primeiro momento, sente o desconforto de sua tarefa. Apesar disso, acreditando que é parte de suas funções profissionais superar quaisquer escrúpulos, permanece no posto.
Nos dias seguintes, María Teresa começa a mudar de opinião, além de constatar que a tocaia beira o inútil. No entanto, em lugar de desistir da missão, a sua permanência naquele lugar infecto, onde ninguém consegue ficar por mais tempo além do que é necessário, começa a lhe fornecer uma espécie de prazer difícil de definir. O que a estimula não é espiar o comportamento dos meninos no banheiro ou a possibilidade de observar e comparar os órgãos genitais dos alunos. Nenhuma desses desvios sexuais contribuí para o aparecimento dessa vontade intangível em estar no banheiro masculino. Tampouco a descoberta de que aquele lugar é um dos poucos onde os estudantes estão a salvo do controle policialesco, permitindo que externem livremente o rancor que os professores lhes causam, é capaz de gerar alguma excitação na monitora.
O que excita María Teresa é a possibilidade de poder vigiar e punir a falta disciplinar, é a possibilidade de flagrar o aluno no delito que antecipa e produz o gozo. Com uma mentalidade pragmática e idealista, pouco coerente com as imperfeições do mundo exterior, María Teresa acredita na superioridade moral que lhe é investida pelo cargo de bedel.  
Simultaneamente, María Teresa se mostra incapaz de perceber as contradições que o seu procedimento (estar ali, no banheiro dos meninos) causa. Vítima de um constructo profissional que castra as diferenças de gênero – porque durante o exercício de suas funções de monitora escolar ela não se imagina como mulher –, María Teresa reprime a divisão sexual, os papeis sociais, as inscrições culturais e, de uma forma oblíqua, e, portanto, pervertida, ignora a paisagem composta por detritos, excrementos, ruídos produzidos durante as funções fisiológicas, odores. Dentro da cabina, no banheiro masculino, dia após dia, ela encontra utilidade para uma vida que até então se caracterizou pela mediocridade.
Cumprindo com suas obrigações “normais” antes dos alunos entrarem nas salas de aula, ou seja, supervisionar as filas, conferir o tamanho das saias, advertir os alunos com estão com cabelos muito cumpridos, impedir que meninos e meninas fiquem muito próximos uns dos outros, María Teresa preenche o tempo até poder voltar ao esconderijo. Na sua mente, a ordem do mundo depende de sua presença no banheiro masculino. Guiada pelo instinto e pela idealização de que a sua causa é nobre, María Teresa sente orgulho de, pela primeira vez em sua vida, estar realizando uma atividade que não lhe foi delegada por algum tipo de autoridade:

Se se pusesse a pensar nisso, coisa que de todo modo nunca faz, María Teresa poderia admitir no máximo uma forma difusa e lábil de satisfação pessoal, atribuída sem dúvida às audácias que ela se permite no cumprimento do dever. Nem sempre se foge dos deveres por causa da indolência moral, às vezes se foge por causa das covardias. E ela está mostrando, ao contrário, um grande atrevimento nesse jogo de espionagem com que sua tarefa de zeladora a fez deparar. Ela sonha com o momento em que o senhor Biasutto a felicite por permitir a drástica sanção dos alunos que fumam escondidos no colégio. Como os outros espiões, os dos filmes, teve de incursionar num território impróprio, e isso é sempre arriscado. As autoridades vão elogiá-la por sua temeridade, enquanto definem a quantidade de admoestações que correspondem à gravidade da incorreção que os alunos cometeram.5    

O fim desse devaneio ocorre de forma abrupta. Durante uma ronda pelo banheiro masculino, Biasutto, o chefe dos bedéis, suspeitando da possibilidade de algum aluno estava praticando o inominável, arromba a cabina onde María Teresa está escondida.
María Teresa, que sente uma estranha atração pelo seu chefe, ou pela autoridade que dele emana, confrontada com o inexplicável, imediatamente perde a capacidade de reação, imediatamente perde o direito à integridade física. Como uma aluna apanhada em falta, e, portanto, ciente de que será punida, nada faz para impedir, alguns dias depois, a agressão sexual – que se repete várias vezes.
 O corpo feminino, que até então estava invisível, porque escondido no uniforme do funcionário exemplar, adquire contornos físicos, ocupa uma posição no mundo social. São as mãos de Biasutto que a agarram e a fazem girar, forçando a sua face contra os azulejos da parede do banheiro masculino. São as mãos do agressor que erguem a sua saia e abaixam a sua calcinha. São as mãos do agressor que tornam incontornáveis as diferenças que existem entre um homem e uma mulher.     
Subitamente, sem que haja um desfecho exemplar, a punição do agressor, a narrativa é interrompida abruptamente pelo relato de um acontecimento histórico: em 14 de junho de 1982, uma segunda-feira, o general argentino Mario Benjamín Menéndez, governador das Ilhas Malvinas, rende-se ao exército inglês, comandado pelo general Jeremy Moore. Não há aulas no Colégio Nacional de Buenos Aires por três dias. Na quinta-feira são retomadas as atividades, como se nada houvesse acontecido. As autoridades do colégio são trocadas – e as antigas desaparecem para nunca mais regressar. Não há cerimônia de transmissão de cargos.
Francisco Cornejo, o irmão de María Teresa, dispensado do Exército, volta a morar com a família. Dois meses depois consegue um emprego numa fábrica de automóveis em Córdoba e vai morar, com a mãe e a irmã, em um bairro chamado “Ilhas Malvinas”.   
Sem se deixar carregar pela emoção dos acontecimentos que relata nas duas últimas páginas, o narrador escolhe a rispidez e o anticlímax para conclui o relato. Além disso, ou apesar disso, as duas últimas páginas revelam mais fatos que as 187 anteriores. Essa inesperada loquacidade, que destoa do tom pausado, analítico, muitas vezes repetitivo, que caracteriza o restante da narrativa, pode ser entendido como uma forma sutil de enviar o olhar do leitor para vários elementos que estão fora do quadro narrativo.
Como lembra, em um outro contexto, João Alexandre Barbosa:

[...] literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura. No entanto, esses elementos ou níveis de representação da realidade são dados na literatura pela literatura, pela eficácia da linguagem literária. Então, entre esses níveis de representação da realidade e sua textualização, seu aparecimento enquanto literatura, há um intervalo – mas é um intervalo, como na música, muito pequeno e que é preciso ser muito rápido para perceber. 6


Ciências Morais é um romance político, centrado na denúncia de um intervalo histórico – seguindo os ensinamentos de Walter Benjamin, “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”, 7 Martín Kohan sabe que uma das funções do intelectual é estar atento a esses relampejares, sabe que é preciso denunciar esses momentos de perigo. Por isso, estendendo as margens narrativas, ignorar a tese de que as histórias de María Teresa e do Colégio Nacional constituem uma grande metáfora interpretativa de um período da vida política da Argentina, ou melhor, da América Latina, é calar diante do grotesco e do horror.
Na personagem María Teresa projeta-se uma das faces mais horríveis da tragédia: a personagem não consegue entender que a violência sexual é idêntica à agressão política com que os governos militares violentam a população que deveriam servir. Anestesiada por acontecimentos que lhe escapam ao entendimento aceita perder as suas características femininas, aceita perder as suas características de ser humano.  Ao se refugiar na alienação produzida pelo trabalho – que é uma forma doentia de fugir de atos e pensamentos que poderiam lhe render outras preocupações – somente vai conseguir encontrar alguma forma de compensação para o vazio que se instaura em sua vida na transgressão moral: espionar o banheiro masculino. Essa atividade é uma maneira desesperada de abrir caminho na direção do afeto. Infelizmente o afeto não se efetiva por esse caminho.  Porque – e isso María Teresa também tem dificuldades para entender – a violência sexual somente resulta em aviltamento e desprezo moral. 8 
Finalmente, nestes tempos neo-bobos, a-pós-o-moderno, em que viceja o politicamente correto, como se esse tipo de postura fosse suficiente para exorcizar todos os fantasmas e as culpas que nos assombram, a narrativa de Martín Kohan está conectada com um postulado elementar: a História, a política e a literatura são ciências morais. E isso resulta na recuperação de uma lição filosófica que tem a sua origem nos filósofos gregos: aquele que pune deve, necessariamente, ser superior moralmente a quem é punido. Este preceito está presente em cada instante da narrativa, mostrando que as ações humanas precisam estar escoradas em algum grau de comprometimento com a correção moral. María Teresa peca pela alienação, Biasutto porque extrapola o exercício do poder; da mesma forma, agem a Argentina e o governo militar. E mais uma vez, o idealismo é superado pela prática social, pela distorção, pelo autoritarismo e, sobretudo, pela barbárie.    



1 KOHAN, Martín. Ciências Morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 7.
2 Martin Kohan é um dos nomes mais importantes da literatura argentina contemporânea. Nasceu em Buenos Aires, em 1967, e é professor de teoria literária na Universidade de Buenos Aires. Escreveu  6 romances e 2 volumes de contos. No entanto, apenas o conto Uma pena extraordinária (São Paulo: Amauta, 2005. Trad. Stella Maris  Baygorria) e os romances Duas vezes junho. (São Paulo: Amauta, 2005. Trad. Marcelo Barbão) e Ciências Morais (São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Trad. Eduardo Brandão) foram publicados no Brasil. Na área dos estudos acadêmicos, publicou, entre outros livros, uma importante análise sobre Walter Benjamin: Zona urbana: ensayo de lectura sobre Walter Benjamin. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004.
3 COLOMBO, Sylvia. Memória da ditadura guia argentino. Folha de São Paulo. São Paulo, 28 junho 2008. Ilustrada, p. E8.
4 DOBRY, Edgardo. Ciencias Morales, por Martín Kohan. Disponível em http://www.letraslibres.com/index.php?art=12689. Acesso em 12/02/2009. No original: No és cuaquier escuela sino el Colegio Nacional de Buenos Aires, una de las instituciones paradigmáticas de la idiosincrasia porteña: institución pública y elitista al mismo tiempo, descendiente del Real Colegio de San Carlos – la principal casa de estudios del breve Virreinato del Rio de la Plata –, que después se llamó Colegio de Ciencias Morales, adyacente a la Plaza de Mayo y por tanto a la Catedral, al antiguo Cabildo y a la actual Casa de Gobierno. El Colegio Nacional fue fundado por Bartolomé Mitre, prócer militar y creador del diário La Nación; en el estudiaron varios de los políticos y escritores más relevantes del país, como Manuel Belgrano, héroe de la independencia, y Miguel Cané, quien se refiere al Colegio en su Juvenilia (1884), la novela clásica argentina, cuyo eco és explícito y paródico en el libro de Kohan.   
5 KOHAN, Martín. Ciências Morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 116-117.
6 BARBOSA, João Alexandre. Literatura nunca é apenas literatura. Disponível em http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021_026_c.pdf.  Acesso em 12/02/2009.
7 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: _____. Obras Escolhidas I (magia e técnica, arte e política). São Paulo: Brasilense, 1985. p. 224. (Trad. Sergio Paulo Rouanet). 
8 Para uma discussão mais aprofundada da questão, ver, entre outros, VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.



(Texto apresentado no Colóquio Internacional Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul, Florianópolis, maio de 2009). 





























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