quinta-feira, 3 de março de 2011

A EXCLUSÃO LÚDICA (mulheres, xadrez e literatura)


O meu maior problema, quando decidi participar deste evento, estava nas possibilidades relativas ao articular do meu texto. Pretensiosamente, conclui ser importante começar com alguma declaração bombástica, quem sabe um pequeno terremoto, grau 6, por exemplo. Considerando-se que a escala Richter tem o seu ápice no grau 8, então deveria causar um escândalo razoável. Enfim, algo que demarcasse o meu “fazer gênero”.
Infelizmente, ao abordar um tema tão exótico como a relação existente entre mulheres, o jogo de xadrez e a literatura, essa minha (as)piração intelectual foi para o brejo. Depois que reuni todo o material, conclui que é impossível que alguém consiga gerar alguma polêmica com esse tema. Pensando bem, nem mesmo Aristóteles conseguiria construir um arremedo de sistema filosófico em cima de tal tese. Pensando melhor, nem mesmo cócegas esse assunto deve despertar. O único escândalo que me ocorreu, naquele momento, foi o contar algumas daquelas estórias escabrosas sobre bispos que “comem” rainhas atrás da torre, enquanto a cavalo, o rei e o peão, sabe-se lá com que intenções, passeiam alegremente, de mãos dadas, pelo tabuleiro. Pura bobagem, como se pode ver. Aliás, como tudo o que parece importar na vida. Mas, esqueçamos essas fofocas. Não é meu propósito ficar demarcando território através de uma série de insignificâncias.
Entendo que o grande sentimento que o jogo de xadrez desperta nas pessoas consideradas “normais” é o tédio. E não poderia ser diferente, pois como é de conhecimento geral, enquanto jogam, teias de aranha se formam na cabeça dos enxadristas. É isso: o xadrez é um jogo chato, onde não acontece nada, os jogadores ficam ali, durante horas, esperando Godot e olhando para aqueles pedaços de madeira ou plástico, enquanto fazem pose de meninos inteligentes. Uma hora, quando ninguém espera, um dos dois jogadores, ladinamente, move um peão lá do outro lado do tabuleiro e isso obriga o seu adversário a mergulhar em pensamentos profundos e, claro, sem o mínimo sentido. É isso: o xadrez é o jogo da inércia. Não acontece nada. Para quem gosta, por exemplo, de jogar aqueles “games” de computador, onde morrem trezentos a cada segundo, convenhamos, não há cristão que agüente tamanho desperdício de tempo.  Simultaneamente, quem é que consegue suportar a inquietude, o desconforto do silêncio? Só se admite, neste jogo, o tic-tac dos relógios. E isso é chato, muito chato. Além disso, não podemos esquecer que, na modernidade, o silêncio é associado com a morte. É preciso agilidade, quando se quer ser moderno, quando se quer mostrar vida, e o xadrez não oferece isso.
Como se não bastasse, ainda há um protocolo mental e sociológico que relaciona a falta de agilidade física dos enxadristas com a hospedagem permanente em algum hospício. Quando alguém fala em xadrez está, por extensão, falando em pessoas excêntricas, cheias de tiques nervosos e capazes de fazer coisas que até Deus duvida – e tudo isso formatado em um estereótipo: homem, jovem, magro, feio, óculos fundo-de-garrafa, quilos de espinhas na cara e um quociente de inteligência acima de três dígitos. Ou seja, alguém que não podendo ter uma vida sexual mediana, se decide pelo onanismo incessante. Ou vai me dizer que essas frescuras de mover as peças, com a ponta dos dedos, um monte de delicadeza desproposital, como se o destino do mundo estivesse ao alcance da mão ou da mente, significam outra coisa além de masturbação? Por maiores que sejam os artifícios na construção das fantasias eróticas, quem é que quer enganar quem? 
Outra coisa: como se não bastassem as tolices que emolduram o jogo, um outro preconceito assola a vida dos enxadristas. O imaginário contemporâneo está convicto de que jogar xadrez transforma instantaneamente o jogador em uma pessoa muito, muito, muito, muito inteligente. Particularmente, tenho minhas dúvidas. E estou muito bem acompanhado nesta viagem. Em 1942, morando em Petrópolis, RJ, Stefan Zweig, ele mesmo um enxadrista amador, escreveu uma novela clássica sobre o tema: Schachnovelle, traduzida ao português com o singelo nome de “Xadrez”.1 O personagem principal, Mirko Czentovic, é descrito da seguinte forma: esse campeão de xadrez era incapaz de, em qualquer idioma, escrever uma frase sem erros ortográficos, e que, como dizia com raiva e desdém um dos seus colegas indignados, “sua falta de cultura em todos os domínios era igualmente universal”. Adotado por um pároco de aldeia, que tentou alfabetizá-lo, Mirko olhava para as letras como se fossem coisas desconhecidas. Quando precisava fazer uma simples adição, utilizava os dedos. No entanto, era ótimo para rachar lenha, trabalhar na lavoura, arrumar a cozinha e, surpresa!, jogar xadrez!
Na vida real, como dizem aquelas pessoas que conseguem separar os atores das personagens que são interpretadas nas novelas da televisão, muitos exemplos similares podem ser mencionados. É o caso de Robert James Fischer, um dos maiores jogadores de todos os tempos. Fischer praticamente não freqüentou a escola. Dizia que lá não havia o que aprender. Aparentemente ele tinha razão, tanto que triunfou na única coisa que fez na vida: jogar xadrez! O divertido disso tudo é que, lá pelos anos 60, Fischer fez questão de volta a estudar. Sim senhor, ele voltou para a escola. Mas, claro, era uma escola especial. Antes que alguém fique pensando que o cara enlouqueceu de vez e ingressou em uma desses manicômios da vida, esclareço o mistério: Fischer queria aprender a língua russa. Para que? Simples, para ler revistas de xadrez! As russas eram as melhores do mundo, na época!
Ainda falando sobre os “ignorantes”, podemos incluir pessoas como o brasileiro Henrique da Costa Mecking, o Mequinho, cuja vida tem sido marcada pelo seu constante fracasso em se adaptar ao mundo que o cerca, e o norte-americano Samuel Rechevsky, que aos 9 anos de idade já realizava partidas simultâneas (modalidade em que um jogador joga contra vários adversários ao mesmo tempo). Nenhum dos dois fez outra coisa na vida além de jogar xadrez!
Em oposição, há aquelas exceções que confirmam a regra: o grande-mestre alemão Robert Hübner é doutor em arqueologia, com especialidade em egiptologia; o grande-mestre inglês John Nunn, além de professor da Universidade de Oxford, é doutor em matemática. Por último, uma doce surpresa: o ex-campeão mundial Mikhail Thal era mestre em literatura!! Sim senhor, com diploma na parede, alunos e tudo o mais que caracteriza esse interessante e instrutivo papel que desempenhamos no teatro da literatura. Claro, não preciso reiterar que todos esses jogadores possuíam Q.I. na faixa dos três dígitos.
Uma fauna! Animais em extinção. Algo assim como um mico-leão dourado! Tá me entendendo? E, melhor ainda, nem o Ibama os protege!
Feitas essas considerações preliminares, vamos em frente, e através da literatura. Pois bem, iniciemos com um exemplo canônico: Fernando Pessoa. Nas Odes de Ricardo Reis, encontro um longo poema, de onde retiro dois fragmentos:

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Trespassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
(...)
Quando o rei de marfim está em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.2

Morrem filhos, mulheres são estupradas, o mundo desaba e os dois jogadores do poema de Fernando Pessoa continuam a jogar, como se nada estivesse acontecendo, exceto o lento e aborrecido deslizar das peças sobre o tabuleiro. Essa imagem, apesar de estereotipada, encontra confirmação nos, digamos, lances de linguagem de um dos dois poemas que Jorge Luis Borges denominou Ajedrez:

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
Reina, torre directa y peón ladino
Sobre lo negro y blanco del camiño
Buscam y libran su batalla armada.
No saben que la mano señalada
Del jugador gobierna su destino.
No saben que un rigor adamantino
Sujeta su albedrio y su jornada.

También el jugador es prisionero
(La sentencia es de Omar) de outro tablero
De negras noches y blancos dias.

Dios mueve el jugador y éste, la pieza.
Que dios detrás de Dios la trama empieza
De polvo y tiempo y sueño y agonia?3


Quer saber de uma coisa? O Barão de Itararé é que tinha razão quando dizia que “saber jogar xadrez só serve para uma única coisa ... jogar xadrez!”.4 Sábio homem!
Mas, e as mulheres? Pois é, onde é que estão as mulheres? E qual é o papel que desempenham nesse jogo? Vou contar uma pequena história. Ao lembrar de Vera Francevna Menchik, a primeira campeã mundial de xadrez, o grande-mestre russo Salo Flohr disse: “Vera Menchik foi a primeira mulher, no mundo inteiro, a jogar xadrez ... como um homem”.5 É isso. No imaginário popular, mulheres, quando jogam bem, jogam como se fossem homens. Mulheres são homens quando jogam xadrez. Parece piada, não é mesmo? Então escuta esta outra história. Na Hungria, jogar xadrez eqüivale, digamos, a jogar futebol no Brasil. Entre os heróis nacionais daquele país destacam-se as três irmãs Polgar, que são tão famosas quanto, digamos, Pelé. A mais talentosa dessas jogadores é a caçula, Judith Polgar. Muito marmanjo já inclinou o seu rei diante dela, inclusive vários ex-campeões mundiais. Pois bem, Judith costuma repetir para quem quiser ouvir que nunca vai ganhar o campeonato mundial feminino. Sabem por que? É simples: Judith quer ser “o” melhor jogador do mundo e por isso, quando pode, só joga torneios masculinos.  Judith joga como um homem. Grande garota!
Continuando no caminho dos preconceitos, encaminho o olhar, outra vez, para a literatura. Em Um baile no matadouro, Lawrence Block,6 um dos grandes escritores de romances policiais, conta, lá pela página 170 da edição publicada no Brasil, a surpresa do detetive Matthew Scudder ao saber a localização de uma testemunha. É que o rapaz costuma freqüentar uma boate chamada “Eighth Square”, a Oitava Casa. Ao ouvir o nome do lugar, Scudder faz um ar intrigado. A solução do mistério tem o gosto de xeque-mate: no jogo de xadrez, a oitava casa é o local onde o peão se transforma em rainha. Vejam só o grau de sutileza do texto: o rapaz que Scudder estava procurando era homossexual.
A essas alturas do campeonato, creio que todos os corajosos que ainda continuam presentes nesta minha caótica exposição, e que ainda não estão dormindo, devem concordar que por trás (epa!) de um joguinho inocente como o xadrez se escondem muitas sujeiras. Por enquanto, encontramos a alienação, a deficiência mental, a misoginia e a homofobia. É pouco? É pouco! E sabem por que? Porque tem mais, muito mais. Tenham paciência que eu já conto mais umas coisinhas sobre o assunto.
Por enquanto, vamos voltar, outra vez, para a literatura. Entre os escritores que tiveram intimidade com o xadrez, Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, é uma referência especial. Em vários de seus livros, o jogo está presente. Exemplos? Em um de seus romances mais conhecidos A verdadeira vida de Sebastian Knight,7 esse “knight” aí é o grande suspeito. Assim como o mordomo é sempre o assassino nos romances de mistério, a palavra inglesa “knight”, cavaleiro, se refere a uma das peças do jogo de xadrez: o cavalo. Mas, é importante destacar a sutileza semântica: a palavra utilizada pelos ingleses é knight, que remete a um estrutura histórica, e não horse, que carrega em si a noção de classe social “inferior”. Claro, xadrez é um jogo elitista, das classes econômicas e culturais superiores. Por isso mesmo é que seus personagens principais são o rei, a rainha, o bispo, o cavalo e a torre (símbolos de uma estrutura de poder muito particular). Os peões, que são a maioria, não passam de, para usar uma terminologia, digamos, mais engajada, massa de manobra. Do ponto de vista político, peões, assim como o povo, são as primeiras vítimas, são os que devem ser sacrificadas. E, claro, ninguém chora por ti, Argentina!  
Em um outro romance, A defesa,8 Nabokov conta a estória de Luzhin, um jogador que acredita ter criado um sistema estratégico que o impede de perder.9 Infelizmente, se o sistema é perfeito, o jogador não o é. Como no poema de Borges, que citei anteriormente, Deus move o jogador e o jogador move as peças. Resta saber: existe um outro deus por trás de Deus e que seja capaz de corrigir os desatinos divinos?
Neste ponto quero pedir desculpas, pois estou entrando em terreno minado, xadrez não rima com metafísica. Voltemos, portanto, às coisas terrenas. Entre os romances que adotam o xadrez como tema, há várias traduções publicadas no Brasil. Fernando Arrabal, o grande teatrólogo espanhol, escreveu uma fantasia psicológica, A torre ferida por um raio.9 Neste texto, que prima pela estranheza narrativa, a ficção política é elevada ao nível do desvario.
Outro texto ficcional sobre o assunto é o romance A variante Lüneburg, escrito pelo italiano Paolo Maurensig.10 Trata-se de um bom exemplo de utilização do tema no romance policial. História surpreendente, com desfecho também muito interessante.
Para não dizer que não falei de flores, preciso mencionar o início do romance mexicano Amphitryon, de Ignacio Padilla,11 em que dois jovens, durante a Iª Guerra Mundial, estão jogando xadrez em um vagão de trem. O prêmio do vencedor é assumir a identidade do perdedor. O vencedor se transforma em um pacato funcionário ferroviário; o perdedor é condenado à morte, na frente de batalha.
No que tange à literatura brasileira, temos pelo menos quatro exemplos notáveis. O primeiro está relacionado com o maior de todos os romancistas brasileiros: Machado de Assis. O cara era, como direi?, um aficionado. Jogava razoavelmente e chegou até a compor alguns problemas (situação de jogo, semelhante a um quebra-cabeças, em que o solucionista deve encontrar a vitória em um número de lances predeterminados). O segundo exemplo é o romance Variante Gotemburgo, escrito por Esdras do Nascimento.12 É um livro ruim, seja do ponto de vista literário, seja enxadristico, mas é um daqueles casos que ficarão na história da literatura. Foi o primeiro romance a ser aceito como tese de doutorado no Brasil. O terceiro exemplo é um conto quase esquecido de Guimarães Rosa, chamado “Xadrez”. Para bem da literatura, deveríamos esquecê-lo de vez. Por último, em diversos momentos, principalmente quando aparece o personagem detetive Mandrake, Rubem Fonseca introduz o xadrez em seus contos e romances. Nesses casos, o jogo tem um aspecto, como direi, sem ser muito cruel?, de elemento decorativo, mas não é possível negar que o xadrez está lá e que Mandrake, na falta do que fazer, maneja as peças na nem sempre alegre companhia de Berta, sua amiga/secretária/sei-eu-lá-o-que, como podemos ver no conto que leva o nome do detetive (incluído em “O Cobrador”).13
Antes que alguém pense em fazer uma pausa para o cafezinho, quero destacar aqui um fato: como podem ver/ouvir, a bibliografia sobre o tema não é tão escassa quanto parecia em um primeiro momento. E isso porque ainda não citei dois casos teóricos muito particulares: George Steiner e Martin Amis. Quer dizer, não havia citado. Vamos ao crime. Amis, um inglês que adora xadrez e tênis, é amigo de jogadores profissionais como o grande-mestre inglês Nigel Short e o ex-campeão mundial Garry Kasparov. Em um artigo que publicou no jornal “The Independent” e reproduzido no Brasil pela “Folha de São Paulo”,14 declara com todas as letras que não existe um jogo mais sangrento e cruel que o xadrez. Como exemplo compara a luta que se trava no tabuleiro com o kickboxing e lembra uma frase de Garry Kasparov: O público precisa compreender que o xadrez é um esporte violento, é tortura mental.
Nesse sentido, sintomaticamente, o grande-mestre romeno Florin Gheorgiu costumava, antes de iniciar suas partidas, repetir um mantra muito particular. Olhando para o adversário, repetia várias vezes, em tom incontestavelmente amoroso: Eu vou destruir você, eu vou destruir você!. Seria isso, uma comprovação de uma tese famosa, proposta pelo psicanalista Ruben Fine? Fine, que foi um dos maiores jogadores da década de 40, sustentava a idéia de que o xadrez é uma representação do complexo de Édipo e que toda partida é uma repetição do velho axioma freudiano: matar o pai e dormir com a mãe. Dar xeque-mate e “comer” a rainha! Uau!
George Steiner, um excelente teórico da literatura, escreveu um ensaio clássico sobre o xadrez. Chama-se Uma morte de reis (incluído, no Brasil, no volume Extraterritorial15). Nesse texto, escrito em tom romântico, lembra que apenas três manifestações da genialidade humana ocorrem na infância: a música, a matemática e o xadrez. E cita diversos exemplos ilustrativos, alguns dos quais mencionei nesta comunicação.
Haveriam outros textos, outros títulos, para serem citados. Como é preciso manter o foco, volto o olhar, outra vez, para as mulheres. Ou melhor, volto o olhar para a ausência das mulheres, seja no jogo, seja na literatura que utiliza o xadrez como tema. Imagem alegórica da guerra, o xadrez está alicerçado em um protocolo masculino, onde pouco ou nenhum espaço há para as mulheres. Embora a popularização de um esporte dependa da massificação, e no xadrez o número de mulheres que jogam em nível de excelência seja muito pequeno, o que podemos visualizar, tanto no que se refere à construção intelectual que alimenta o imaginário do jogo, como na literatura que o representa, é que as mulheres não estão incluídas como protagonistas. Talvez a única exceção seja no romance Alice através do espelho, de Lewis Carrol,16 mas o texto é tão maluco, tão cheio de nonsense e de delírios que, francamente, não pode servir como referência. 
Ainda sobre a questão da ausência das mulheres, nunca é demais lembrar uma frase de Bobby Fischer: “Precisando escolher entre as mulheres e o xadrez, prefiro o xadrez”. Hummmm....  Mas, sem querer defender Fischer, como é possível entender os casos da ex-campeã mundial Maya Chiburdanidze e da mestra argentina Claudia Amura que, quando abandonaram o jogo, entraram para um convento!?!? 
Continuando essa minha bagunça, gostaria de lembrar que o verbo mais importante no xadrez é “comer”. “Comer, comer, esse é o meu maior prazer”. E como todos sabemos, para que alguém coma, alguém precisa ser comido. Peças entram e saem do tabuleiro, algumas são sacrificadas, outras são tomadas a força – e, em muitos desses casos, o gozo é impossível de ser escondido. Certo, as peças não usufruem do prazer advindo do gozo, mas o jogador ... esse sim, sabe o quanto é delicioso “comer”. O problema é que esse “comer” só se realiza no plano simbólico, ou seja, não se efetiva como ato concreto, físico. A única coisa que podemos perceber como gesto intencional desse “comer” é o mover manual das peças sobre o tabuleiro. Como já afirmei anteriormente, há um visível movimento masturbatório nessa representação da violência sexual. Por isso mesmo, como uma repetição incessante da verborragia masculina, o esgrimir falocrata não passa de um exibicionismo miserável e broxante. Legítimo blablablá. E isso significa que no reino dos fetiches sexuais sempre haverá lugar para pervertidos que se satisfazem com, digamos, para não ser muito cruel, sexo oral!   
De qualquer forma, é preciso lembrar que existem 32 peças no tabuleiro quando o jogo inicia. E que apenas duas são mulheres. Cada um dos jogadores dispõe de uma rainha – e, se me perdoarem a expressão politicamente incorreta, principalmente em um evento que trata das questões de gênero!, muitas vezes uma “come” a outra!
E já que a conversa está enveredando para esse tipo de assunto que privilegia o baixo ventre, desculpe, o baixo nível, gostaria de, outra vez,  pegar (epa!) esse gancho, ou seja, a discussão sexual. Durante uma partida, entre as várias possibilidades de alguém “comer” alguém, o jogador poderá – em situação “normal” – comer oito peões, duas torres, dois cavalos e dois bispos. E, por fim, se não estiver empanturrado, talvez sobre espaço para “comer” a rainha. Tudo depende de como se desenvolver a partida. Tudo depende de suas preferências. Sexuais, inclusive. O único que “tira o seu da reta” é o rei, pois na hora H, quando está prontinho para ser comido, o jogo acaba. Cara de sorte! Ou será de azar?  Deixo essas questões em suspenso, pois já fui longe demais!

Para finalizar, peço licença para citar um outro poema. Apesar de parecer, é isso mesmo, parecer não estar relacionado com o tema que escolhi, aponta para um desses momentos-chaves de qualquer discussão, de qualquer tese. 
Bertold Brecht escreveu dois poemas (pelo menos eu só conheço dois) sobre a morte de Walter Benjamin. Significativamente, um deles menciona as intermináveis partidas de xadrez que os dois jogaram em uma das três temporadas que passaram juntos em Skovbostrand per Svendborg, na Dinamarca, onde Brecht estava exilado.
O poema se chama: “A Walter Benjamin, que se suicidou quando estava fugindo de Hitler”, e diz o seguinte, nos seus quatro versos:

Extenuação era a tática que te aprazia
Sentado à mesa de xadrez na sombra da pereira.
O inimigo que te desalojou dos livros
Por gente como nós não se deixa extenuar.17





1 ZWEIG, Stefan. Amor e xadrez (e fragmentos do diário – agosto de 1936). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
2 PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio 2-3 (Odes de Ricardo Reis). 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 104-106.
3 BORGES, Jorge Luis. Obras completas (1952-1972). T. II. Barcelona: Emecé Editores, 1989. p. 191.
4 SOUSA, Afonso Félix (Org.). Máximas e mínimas do Barão de Itararé. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 135.
5 HORTON, Byrne J. Moderno dicionário de xadrez. 3. ed. São Paulo: Ibrasa, 1973. p. 174.
6 BLOCK, Lawrence. Um baile no matadouro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
7 NABOKOV, Vladimir. A verdadeira vida de Sebastian Knight. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
8 NABOKOV, Vladimir. A defesa. Porto Alegre: L&PM, 1986.
9 Há uma interessante adaptação cinematográfica do romance de Nabokov: The Luzhin defence (Inglaterra/França, 2000. Dir.: Marleen Gorris) e que recebeu, no Brasil, o título de O último lance.  
9 ARRABAL, Fernando. A torre ferida por um raio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
10 MAURENSIG, Paolo. A variante Lüneburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
11 PADILLA, Ignacio. Amphitryon. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.  
12 NASCIMENTO, Esdras do. Variante Gotemburgo. Rio de Janeiro: Nórdica, 1977.
13 FONSECA, Rubem. Mandrake. In: ______. O cobrador. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
14 AMIS, Martin. Os enxadristas não são mais desleixados. Folha de São Paulo. São Paulo, 21. Nov. 1993. Caderno de Esportes. p. 10.
15 STEINER, George. Uma morte de reis. In: ______. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 55-64.
16 CARROL, Lewis. Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
17 BRECHT, Bertold. A Walter Benjamin, que se suicidou quando estava fugindo de Hitler. Apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da História. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical). p. 78.


(Texto apresentado no V Encontro Internacional FAZENDO GÊNERO, Florianópolis, 2002).

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