sexta-feira, 25 de março de 2011

VOCê LEU O LIVRO DO CHICO?


A pergunta está envolta por uma redoma retórica, mas admite o sempre bem-vindo exercício da conversa fiada, aquele que fica mais saboroso em mesa de bar, os olhos brilhando com o (ou por causa do) desfile das garrafas de cerveja, os tira-gostos que se renovam como se fossem banquetes imperiais, umas moças bonitas que entram e saem de nossas vidas sem pedir licença, o final da tarde que não tarda nem oprime. 
Então, para que essa crônica obtenha algum sentido, façamos de conta que estamos em um boteco e... perguntas possibilitam a tessitura das hipóteses, passos que damos na direção das respostas. O narrador de uma novela (quase homônima ao título acima) do Márcio Moraes Valença lança uma possibilidade: “[...] não leu. Comprou e não leu, como o livro do Jô, do Caetano e tantos outros. Sua estante está cheia de livros nunca lidos”. É uma perspectiva interessante, que nos revela o quanto é engraçada a natureza humana. Por exemplo, esse hábito, raramente salutar, de adiar projetos. Seja por convicção, seja por brincadeira, as nossas histórias pessoais estão repletas de situações em que “deixamos para mais tarde” o que, de uma forma ou de outra, não gostaríamos de fazer nem agora nem nunca. Um amigo (que odeia a indústria cultural e a contemporaniedade) costuma dizer que é preciso esperar, no mínimo, uns dez anos para saber se um livro merece ser lido. E, com essa desculpa (ou, quem sabe?, filosofia existencial), vai estabelecendo vínculos afetivos com o envelhecimento, sabedor de que a vida é muito curta para perder tempo com algumas bobagens e certos livros.

Uma outra possibilidade é a estratégia clássica do atordoamento, que começa com o iniludível “não li e não gostei”. Em seguida, cabe acrescentar alguma explicação tola, o valioso recurso de passar um pouco de anestésico sobre a ferida, “eu só gosto do Chico músico, principalmente naquela fase em que ele esbanja sensibilidade, decifrando a alma feminina”. Antes que alguém reclame ou faça sugestões, deve-se aproveitar o momento e cantarolar (bem desafinado – senão não tem graça!) algum sucesso antigo, “Ah, se já perdemos a noção da hora / Se juntos já jogamos tudo fora / Me conta agora como hei de partir”. O encerramento do espetáculo deve contribuir para o exorcismo dos maus espíritos. Ou seja, com algum comentário canalha, “Você viu como aquela garçonete é gostosa?”

Claro que o livro do Chico está em um outro patamar. Há toda uma tradição intelectual familiar que não devemos ignorar. Os livros do Sergio (pai do Chico) são monumentos de interpretação sociológica, “biscoitos finos da modernidade” em um país que muitas vezes adora virar as costas para si mesmo. O filho, por sua vez, quando não está jogando futebol, dedilha umas frases musicais no violão e... como direi?, compõe umas cançonetas. Nada demais, é claro. Nada que não possa ser usado como mapa da alma lírica brasileira.
Mas não é só isso, como se não bastasse ser um protegido dos deuses, o Chico é um bom-moço, um modelo a ser seguido, e, com a ajuda de um par de olhos verdes, esbanja talento natural para atrair as mulheres – o que não evitou, depois de alguns anos de desgaste afetivo, que a mãe dos seus filhos aplicasse um glorioso pé-na-bunda do artista!

Pois é, o Chico vive cercado de fãs de carteirinha, aqueles que guardam a chama da fidelidade, da devoção e do respeito ao autor. São esses mesmos que atravessam as madrugadas devorando obscenamente o último livro do cara, suspirando, como se fosse o prenúncio de um orgasmo, diante de cada frase ou parágrafo que consideram mais interessante. São esses mesmos que, em um exame anti-doping, acusarão níveis altíssimos de intolerância à crítica e ao bom-senso.

“Ó falso Leitor, / amigo meu, meu igual, meu irmão!”, juro que guardo o teu segredo, não vou contar para ninguém, diz só para mim: você leu o livro do Chico?

Sei que você anda desencantado com a literatura, que não suporta olhar para as vitrinas das livrarias (ou para as listas dos mais vendidos). Em pilhas com trinta exemplares da mesma nulidade, destacam-se as explicações sobre como ganhar mais dinheiro, recordações sobre “os velhos tempos” e que o autor imagina terem sido inesquecíveis, recomendações sobre o caminho da felicidade, plágios diversos das idéias de Aristóteles, Platão, Sócrates, Freud, Proust e outros menos cotados, e, lá no meio da mesa, como se fosse um ingresso ao Olimpo, os olhos do leitor encontram algumas edulcoradas lições de ética – que ninguém segue, mas que sempre são citadas como paradigmas de comportamento social.

Enfim, faltam nas livrarias a leveza (no sentido empregado por Italo Calvino) de histórias que sejam convites ao prazer do texto (no sentido empregado por Roland Barthes). Em versão shakespeareana, falta “A tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing”. Ou melhor, significando tudo, porque é com as artimanhas da ficção que enfrentamos os conflitos desiguais que marcam a luta diária que a razão cultural precisa travar contra a razão utilitária (que, com a desculpa de que “é isso que vende”, abre um distanciamento abissal na intimidade que existe – ou deveria existir – entre o livro e o leitor, entre a tesão e a imaginação).

Nesse cenário apocalíptico, com um livro na mão, qualquer livro, todos nós parecemos anacrônicos, figuras que destoam do anti-intelectualismo vigente e das ilusões gozosas (gasosas) produzidas pelo capitalismo selvagem. Além disso (quando efetuamos esforços para considerar as demandas do mercado livreiro), corremos o risco de acreditar que entrar em uma dessas discussões sobre leitura, sobre o que ler ou deixar de lado, em vez de procurar pelo ideal iluminista de romper com a idade das trevas estamos colidindo com uma retomada da barbárie, momento em que ler, pensar e interpretar o mundo que nos cerca é uma maldição. Ou uma perda de tempo.

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Apesar das dúvidas produzidas pelas imposições ideológicas do “deus capital” (e das compensações fugazes do consumo), o livro do Chico espera pela minha leitura – e pela tua. Bem seguro entre as mãos, o volume (capa branca ou laranja, escolha você) é uma forma de anunciar o momento em que o humanismo transita entre a liquidez da retina e o pensamento concreto. Então, talvez como uma demonstração de resistência, talvez como uma forma de reforçar a esperança de que a modernidade ainda possuí espaço para a diversidade, essa é a hora de iniciar a leitura: “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias e do nome da minha família. [...]”.

(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM SETEMBRO DE 2009, EM http://www.escritoresdosul.com.br/)

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