quinta-feira, 3 de março de 2011

PELOS OLHOS DE NAEL: ENTRE O EXÍLIO E A RUÍNA

A casa foi se esvaziando e em pouco tempo envelheceu.
Milton Hatoum: Dois Irmãos

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem, as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens o acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silencio dela; nos nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes.
Milton Hatoum: Dois Irmãos


Uma casa não é o lugar adequado para guardar segredos. No entendimento de Gaston Bachelard,  a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade (Bachelard, 2003:36). Desafortunadamente, a estabilidade não é permanente e muda de estado físico quando em confronto com segredos – que se propagam, assim como os incêndios e as inundações, para além das paredes, das janelas e dos muros, minando as certezas emocionais, quebrando as resistências físicas, insinuando catástrofes, corroendo a legitimidade estabelecida, promovendo aqueles instantes em que os indivíduos são tomados pelo medo de ter medo. Segredos segregam a intimidade, instituem vozes pouco confiáveis e aniquilam com o que até então era preciso/precioso. Segredos são formas oblíquas de exterminar com as relações sociais. Uma casa não é o lugar adequado para guardar segredos.

Retomando Bachelard:

É graças à casa que um grande número de nossas lembranças são guardadas; e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios. (Bachelard: 2003: 27-28).

A casa é a morada do devaneio. E o devaneio é aquele momento em que o tempo (presente ou pretérito) é retido pelo olhar, pelos contornos fornecidos pela imaginação, pelas inexatidões da memória, e pelo espaço cênico, lugar onde o onírico se impõe como elemento/alimento fundador das lembranças, das ilusões e do fabular. Por esse motivo, e por muitos outros, é que adotamos a casa – entendida aqui como o topos onde está localizada a família – como o espaço social em que são concretizados todos os vínculos afetivos.
Ao mesmo tempo, a casa é um território de conflito, um campo de batalha – heróis e bandidos se confundem no combate de tal forma que ser herói ou bandido não constituí a mínima diferença, porque nessa luta ter razão é irrelevante. Os interesses em jogo, dentro de uma casa, são em tal número e com tamanha diversidade que é praticamente impossível constituir/construir uma proposta humanística e/ou fraterna – em muitas circunstâncias, as regras impostas pelo coletivo (infinitas/infindáveis vezes decretadas pelo poder patriarcal) revelam-se um obstáculo intransponível.
Por isso mesmo é que a história de uma casa está alicerçada em um constructo ilusório, composto pela topologia das ruínas materiais e pelo exílio supra-humano que constitui todos aqueles momentos que nos ligam ao passado (a família presa, para todo o sempre, no álbum de fotografias; reencontros inadvertidos com pessoas que – em um dado instante – compartilharam conosco de momentos emocionais; lembranças de fatos ou circunstâncias que, pouco importando se aconteceram ou não, hão de nos perseguir pelo resto da vida).
A história de uma casa é uma imagem ficcional: ao regressarmos à casa (depois de dez minutos, depois de uma semana, depois de um ano, depois de uma vida), não há garantias que possamos encontrá-la do mesmo jeito em que a deixamos. Na velha tradição da filosofia proposta por Heráclito, o obscuro: águas sempre diferentes fluem sobre aqueles que entram no mesmo rio (Luce, 1994: 46).
Em uma outra vertente interpretativa, a  história de uma casa eqüivale ao embate entre aqueles que, por “n” motivos, se julgam herdeiros da história que envolve a casa (e que, amparados pelas ilusões da origem, travam uma luta fratricida para instituir um poder hegemônico) e os “outros” (que, muitas vezes, moram fora das paredes da casa). Em outras palavras, aceitar a idéia de “casa” implica em entender que há um território em disputa e que, embora isso pareça absurdo, em um primeiro momento, há uma batalha interna entre aqueles que a habitam. Posteriormente, os sobreviventes desse primeiro combate necessitam lutar contra os bárbaros.
(Aqui necessário se faz um parênteses: no sentido original grego, “bárbaros” são todos aqueles que estão fora do domínio helênico. Em outras palavras, a denominação “bárbaro” eqüivale a um muro de contenção contra tudo o que não está inscrito nos limites políticos, jurídicos e morais dos gregos [Cassin et alli, 1993; Mattéi, 2002]).  
     
Atualizando o conceito grego, pode-se dizer que, na modernidade, espelhada na fragmentação/fragilidade da estrutura familiar, os bárbaros invadiram a casa e assumiram parte do poder: nada mais assustador, e paranóico, para aqueles que habitam a casa, que conviver com um inimigo sem rosto e que compartilha o interior do território em disputa. Qualquer semelhança com o conto A casa tomada, de Júlio Cortázar (Cortázar: 1979: 7-13) não é mera coincidência. Essa ameaça adquire níveis similares ao insuportável. A ameaça, assim como o segredo, abala certezas, instaura a insegurança e o terror. Por isso mesmo é que, na medida em que alguém recorda a casa (momento de pertença emocional), esse exercício de rememoração desagrega/desagrada todos aqueles que um dia viveram/lutaram/envelheceram sobre o mesmo teto. É a história comum que oprime, pois retoma, como um projeto do presente, um passado que quase todos gostariam que nunca tivesse ocorrido. Aquele que lembra, não lembra do passado com a intensidade que o lembrar exige, mas o lembra com força suficiente para reconstruir (mesmo que de forma precária) o que deveria ser esquecido. A cada fato lembrado, novos fragmentos se agregam, um fio puxa o outro, estabelecendo pontes entre abismos, reconstruindo as lacunas que foram construídas pelo esquecimento.

(Segundo parênteses. Dentro desse labirinto chamado memória, o fio que Ariadne entregou para que Teseu pudesse encontrar o caminho de volta, depois de enfrentar e vencer o Minotauro, não o conduziu até a verdade. Nesse jogo, em que se misturam lembranças, invenções e esquecimentos, é necessário saber distinguir qual é o monstro que está sendo procurado. Fecha parênteses.).

Ampliando a discussão e transportando-a para  a cena final do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, encontramos alguns pontos de contato: 

Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim, ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora. (Hatoum, 2000: 265-266)

“O olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo”. Quantos sentimentos, quantas perdas, quantas filigranas estão incrustadas nesse “olhar à deriva”? O que realmente está acontecendo nesse instante de perplexidade, em que um homem de meia-idade “e já quase velho”, depois de dois anos e meio de prisão, procura por Nael, olha para o rapaz, não diz uma única palavra, vira as costas e vai embora? Omar (anagrama de “amor”) sai de cena com o corpo alquebrado e a dignidade intacta – e isso, para Nael, é frustrante, pois, pela primeira vez em sua narrativa, percebe que Omar jamais dividirá com ele certas intimidades, inclusive a chave do segredo que os une. Diante dos olhos desiludidos de Nael, Omar se tornou apenas um vulto, confirmando o horror, as ruínas da família, o passado que não mais será compartilhado, a decadência humana e a perda irremediável do pai.

A imagem descrita na cena final de Dois Irmãos é dolorosa e está fundamentada em uma estrutura intelectual: Nael, quando escreve/recorda/inventa a história de sua família (e, consequentemente, a sua história pessoal), não se contenta em apenas evocar uma imagem – o ato da escritura implica no desejo de compartilhar as recordações, na medida em que as letras impressas no papel se transformam, diante dos olhos do leitor, em imagens. Por isso, a narrativa foi escrita/inscrita com os meandros torturantes da prosa – a intensidade da dor somente atinge uma dimensão significativa de sofrimento no  momento em que adquire a forma de narrativa. Escrever é lembrar. E sofrer. Mas Nael não quer apenas lembrar e sofrer. Nael não quer ser apenas o espectador privilegiado de um episódio sangrento. Também não quer transformar a sua narrativa em mais um espetáculo emotivo, desses que beiram a banalidade. Nael deseja que o leitor, ao ler a sua narrativa, seja um parceiro; ou melhor, um cúmplice. E essa cumplicidade vai se estabelecendo na medida em que efetua o que Luiz Costa Lima definiu como o romance de um mundo flutuante, assediado tanto pela razão calculadora como pelos afetos desenfreados (Lima, 2002: 322).

No entanto, a lógica discursiva de quem narra uma história não é a mesma que a de quem viveu essa história e está narrando-a. Nael quer transmitir os acontecimentos, como imagina que eles aconteceram. Mas, ao mesmo tempo, não possuí certeza de que os fatos ocorreram como ele os está narrando. Muitas coisas sucederam-se longe de seus olhos. E isso significa que parte significativa das informações que constituem a sua narrativa foram obtidas através de fontes secundárias e terciárias – o que implica (principalmente para o leitor) em aceitar que alguns fatos podem estar distorcidos por múltiplos interesses. Tentando corrigir essa falta de precisão, Nael adota uma espiral narrativa, onde repete alguns dos fatos através de diferentes rememorações temporais (compartilhando com o leitor momentos vazios de urgência). Essa técnica narrativa procura confirmar a veracidade do que está sendo narrado – infelizmente, esse distanciamento, esse descrever dos acontecimentos através de outros olhos que não os de Nael, se assemelha, em algumas oportunidades, ao retratar peixes em um aquário.

Um outro problema: o uso da espiral narrativa como roteiro para um passeio emocional apresenta perigosa proximidade com um barroco extemporâneo (linguagem rebuscada e excessiva, moralidade retórica, dualidade, amor como ideal almejado, o mundo como sobreposição de formas, sons, luzes e movimentos, etc..),  o que possibilita ao leitor perguntar se o narrador não teria perdido, em algum ponto de sua narração, a memória narrativa. É claro que isso não aconteceu, mas a suspeita permanece. 

A casa é o mundo e seus perigos. Nael, o filho de Domingas, o filho da empregada, o filho bastardo da empregada, o mestiço sem raízes (filho de uma índia e, talvez, de um descendente de árabes), embora almeje reconstruir a história de sua família, somente encontra o seu lugar fora da casa. Em outras palavras, é um excluído. E nessa condição de trânsito sempre se encontra em lugar impróprio – caracterizando o indivíduo que nunca poderá ter compensação pela sua condição de “errante”. Essa imagem se completa quando o personagem “Nael” adquire visibilidade na narrativa: é um agregado, um indivíduo sem identidade, sem qualificações e que vive na casa “de favor” – raras vezes deixa de ser “um menino de recados”. 

Nas palavras de Edward Said, [o exílio] é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada (Said: 2003: 46). Essa percepção de que o exílio é uma “tristeza essencial”, cujas realizações (...) são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre (Said: 2003: 46), impede que Nael rompa com as carências afetivas que o atormentam: Dois Irmãos refaz o itinerário passional do filho bastardo eternamente a procura de um pai (pater) – e esse sentimento está refletido em um relato que oscila entre a miopia afetiva e o ódio edipiano. Basta lembrar que, alguns momentos, Nael encanta-se com a idéia de que Omar seria esse pai mítico, inalcançável; em outros, imagina que entre Yaqub e Domingas sempre houve algo mais forte do que uma amizade; em um terceiro momento, faz alusões complicadas sobre Halim. É esse sentimento (não ter pai, não ter família, não ter um lar – e, por extensão, não ter uma pátria) que o faz narrador em Dois Irmãos   única forma de tentar recuperar o mundo idílico, instituído no seu imaginário e constituído pela família que nunca o aceitou.  

Na narrativa de Nael, a casa somente existe como imagem pretérita, esquartejada pela memória: situado no bairro portuário de Manaus (“Manaus Harbour”), o sobrado estava localizado próximo da praça Nossa Senhora dos Remédios, em uma rua em declive, sombreada por diversas mangueiras; aos fundos, uma portinhola no meio da cerca separava o terreno de uma ruela de chão batido, onde havia um cortiço, morada de muitas das mulheres que trabalhavam como empregadas em casas de família da região. Foi nesse sobrado que Halim e Zana se conheceram. Galib, o pai de Zana, era o proprietário do Restaurante Biblos (livro, em árabe), que funcionava na parte térrea da casa.

A topografia da casa inicia no quintal, onde, perto da seringueira, Galib cultivava ervas do Oriente (hortelã, zatar, pimentas).  Ao lado do galinheiro,  o pomar (jaca, fruta-pão, ingá, jambo).  O alpendre, onde tantas vezes a rede vermelha acolheu o corpo bêbado de Omar, demarcava o início da casa. Uma janela trazia luz para a sala, esse espaço habitado pelos objetos afetivos: o tapete árabe, os vasos e o aroma das flores, o espelho (um deles, o veneziano, Omar, em um acesso de fúria, quebrou com uma corrente [Hatoum: 2000: 172-173]), a cristaleira, as fotografias emolduradas. Os visitantes eram acomodados no sofá cinzento e nas cadeiras de palha. Em um dos cantos da sala, em um pequeno altar, ladeado por azulejos portugueses, a estátua da santa padroeira observava tudo o que ocorria na casa. Em frente ao altar, uma bíblia aberta. Silenciosamente um corredor levava até os dois quartos contínuos, onde, durante algum tempo, dormiram Yaqub e Omar. No lado oposto, a cozinha, o banheiro e o quartinho dos fundos, onde Domingas passava e engomava roupa. Para chegar no andar superior, onde se localizavam o quarto de Rânia e a alcova de Halim e Zana, uma escada. Fora dos limites físicos da casa, no quintal, foram construídos dois quartos, onde dormiam Nael e Domingas. No quarto de Nael, duas janelas: uma para o quintal, outra para o alpendre. Dessas janelas, Nael testemunhou parte da história de sua família.

Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar (Hatoum, 2000: 220). O turbilhão de ódio entre Yaqub e Omar, somado aos desacertos econômicos dos irmãos gêmeos, resulta em dívidas. Rochiram, o indiano, aproveita-se das circunstâncias e ameaça a família com um processo. Na ausência dos irmãos (Yaqub em São Paulo, Omar fugindo da polícia), Rânia entrega a casa como pagamento dessas dívidas. Por um breve período, a casa é de Nael:

Fiquei sozinho na casa, eu e as sombras dos que aqui moraram. Ironia, ser o senhor absoluto, mesmo por pouco tempo, de um belo sobrado nas redondezas de Manaus Harbour. (Hatoum, 2000: 253).   

 Depois, o novo dono assume o controle e a casa é reformada, perde suas características. Transforma-se em uma outra casa, talvez um abismo, desses em que as lembranças se despedaçam enquanto caem. 

O único elemento de resistência, nessa história de desencontros, é Nael, que está ligado emocionalmente com a casa, com o conceito que envolve a casa (e, por extensão, com o conceito de família). Mas, há um empecilho: Nael é um bárbaro (no sentido original grego). E, como todos os agregados e/ou serviçais, está, desde sempre, segregado ao lado externo da casa. Mesmo quando recebe um quinhão da herança, continua do lado de fora:

No projeto de reforma, o arquiteto deixou uma passagem lateral, um corredorzinho que conduz aos fundos da casa. A área que me coube, pequena, colada ao cortiço, é este quadrado no quintal.
“Tua herança”, murmurou Rânia.
A bondade tarda mas não falha? Soube depois que Yaqub quis assim: quis facilitar minha vida, como quis arruinar a do irmão. (Hatoum, 2000: 256).

É nesse “quartinho”, nesse espaço físico exíguo, que Nael escreve/inventa a última parte de seu relato. É nesse local, marco cartográfico de seu particular exílio e das ruínas que constituíram a sua família, que recebe a visita de Omar, na cena final do romance. Nesse momento, quando o patético se mistura com a tragédia, Omar, molhado pela chuva, olha para Nael com visível perplexidade. Nenhuma palavra é trocada. Nada mais une esses dois estranhos, que, em momento impreciso, partilharam de uma história comum: a casa não mais existe e, portanto, não é mais um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade (Bachelard, 2003:36); a família implodiu; há mortos por todas as partes. Aturdido, como se percebesse a inutilidade de compreender, Omar recuou lentamente, deu as costas e foi embora (Hatoum, 2000: 266).


Considerações finais


Ler Dois irmãos é quase uma cilada, um beco sem saída, o momento em que o leitor, incrédulo, se pergunta: mas porque escrever um romance cujo final é tão triste, tão vago, tão cheio de vazios? É difícil responder essa pergunta. Inclusive porque, em Dois irmãos, o que se salva é a forma com que Nael domina a linguagem narrativa e escreve/inscreve a sua história, como se isso fosse suficiente para subtrair esses interstícios, esse silêncio. É como se Nael percebesse que a expressão dos sentimentos não se dá pela qualidade do tema abordado. É como se Nael percebesse que a literatura somente se revela como “literatura” no momento em que expressa o indizível.

Então talvez seja agora a hora de ver além dos olhos de Nael. Talvez seja a hora de ver em Omar um homem despido de valores afetivos, cujo coração batia errado, e que, ao voltar as costas para os escombros da casa, abandonando as imagens presas na memória parcial de Nael, decide manter intocado o segredo que talvez pudesse fornecer a chave que desvenda os mistérios que foram soterrados pelo ódio fraterno.

Talvez seja a hora de ver que somente se liberta da casa (e da família e dos segredos) aquele que, de posse de uma consciência que nega as ruínas da dor, enfrenta sem medo a imensidão da rua.  

Talvez seja a hora de ver Nael como alguém que, prisioneiro de suas angústias pessoais, inventou um pai para justificar a inércia e o desperdício de sua própria vida. Sem poder confirmar a extensão dessa dor, sem poder fornecer um nome para essa sombra sem corpo que é a paternidade, preencheu páginas e mais páginas de um manuscrito, contando uma história de destruição familiar. Nael, mais do que testemunha do ódio fraterno, é aquele que, não podendo viver intensamente as emoções do mundo, conta a vida de Outro – e se realiza através do narrar de vidas que não são a sua. Escrevendo sobre Marcel Proust, Samuel Beckett observa que um clímax de segunda-mão é melhor do que nada (Beckett, 2003: 31).

Talvez seja a hora de ver que a memória de Nael, ao contrário da memória proustiana, não está procurando por um tempo perdido. A procura é de uma outra ordem: um conjunto de explicações para a angústia emocional que o corrói. Infelizmente esse anseio não se concretiza, visto que a narrativa é tributária de uma memória fragmentada e incompleta – os  múltiplos vácuos narrativos (por exemplo: o que será que aconteceu com Yaqub, no Líbano?), a falta de uma melhor contextualização em algumas questões elementares (por exemplo: Lívia como elemento desagregador entre Yaqub e Omar) e o grande segredo, a paternidade de Nael, estão inscritos no silêncio e na distância afetiva. O leitor não obtém respostas capazes de preencher esses vazios.

Então, para podermos entender algumas nuanças de Dois irmãos, talvez seja a hora de ver além dos olhos de Nael.


Bibliografia


BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
CASSIN, Barbara; LORAUX, Nicole; PESCHANSKI, Catherine. Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
CORTÁZAR, Júlio. Bestiário. São Paulo: Ediouro, 1979.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.
LUCE, John Victor. Curso de Filosofia Grega: do Séc. VI a.C. ao Séc. III d. C.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Unesp, 2002.
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

(Texto apresentado no IX Congresso Internacional da ABRALIC, Porto Alegre, 2004).


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