quarta-feira, 9 de março de 2011

PÉROLAS ABSOLUTAS, CONCHAS RELATIVAS


 
Todos devem ter guardado, em algum recôndito de suas almas, a marca do rancor. O rancor que vai sedimentando aos poucos, que é como um câncer, silencioso e traiçoeiro. O rancor que é pior do que o ódio, porque é um ódio em conta-gotas.
Heloísa Seixas: Pérolas absolutas.

           
Em um dos poemas de Armando Freitas Filho encontramos a imagem de um colar que se rompe. As pérolas-lágrimas deslizam pelo chão, em todas as direções. O poema termina perguntando:

Como agarrar ou ser agarrado neste deserto triunfante
Por alguma coisa que me ame?  (Freitas Filho: 1985: 69)

            Provavelmente as personagens do romance Pérolas Absolutas, de Heloísa Seixas (Seixas: 2003), também querem agarrar/ser agarradas por alguma coisa que as ame. Mas, antes que isso seja possível, há esses momentos em que a interferência humana, com suas imprecisões e loucuras, mineraliza os afetos; há esses abismos que seduzem com promessas de vertigens e ataraxias; há esse marcar a terra com seus rastros inquietos para que outras almas solitárias possam, talvez, um dia compreendê-los (Seixas, 2003: 56).  
                Pérolas Absolutas é um romance de leitura difícil. Através de fragmentos,  muitas vozes se projetam no texto, criando uma espécie de algaravia – há momentos em que é difícil precisar quem está narrando e quem está sendo narrado. Perspectivas móveis, linhas de fuga que nunca se encontram no horizonte. Há também uma razoável gama de temas paralelos – vou, neste texto, me concentrar em apenas um: a relação afetiva, ou melhor, a relação de ódio, entre as “irmãs de sêmen” Sofia e Lídice. No entender de Heloísa Seixas, mulheres que compartilham de um mesmo homem são “irmãs de sêmen” e possuem um laço inquebrantável (Seixas, 2003: 139). Sofia , 45 anos, morena, olhos castanhos, 10 anos de casamento. Lídice, 35 anos, loura, olhos azuis, amante durante 10 meses. Duas mulheres. Desculpem-me, errei nas contas, não são apenas duas mulheres com o nome de duas cidades, uma búlgara, outra tcheca.  São três mulheres, circunvagando pela perversidade do existir: Sofia, Lídice e Lídia. Ninguém sabe com certeza se Lídia existe; ninguém sabe se Lídia é realmente a irmã gêmea e louca de Lídice. Vale arriscar uma hipótese mais interessante, dessas que manejam os duplos como se fossem peças de jogos de armar, jogos de amar, jogos de matar: Lídia é fruto de uma transformação metamórfica de Lídice, instante em que Lídice não mais deseja ser Lídice e então adota um corpo, uma voz e uma personalidade que estão fora do alcance da normalidade construída pela lógica. Isso é um pouco confuso, eu sei, eu sei, então vou, neste texto, me concentrar apenas na relação afetiva (ou melhor, na relação de ódio) entre as quatro irmãs: Sofia, Lídice, Lídia e Isabel. Sei que Isabel ainda não havia entrado nessa história, sua presença é tão pequena e ninguém sabe se ela realmente existe, se é apenas fruto da imaginação de Sofia; ninguém sabe se ela é a irmã gêmea de Sofia, aquela que morreu ou foi embora (é a mesma coisa, pois abandonar é um gesto de amor, como tantas vezes pressentiu Sofia).
Pérolas Absolutas está alicerçado na multiplicação das mulheres – difícil saber quem está deste lado da margem, quem está do outro, o espelho de Alice não era lá aquelas maravilhas, mas, como é de conhecimento público, geral e irrestrito,  permitia que os dois lados pudessem se encontrar, mesmo quando era apenas para brincar de esconde-esconde. Falta um espelho nesta história, falta uma história neste espelho, sobram personagens e esconderijos.
Pérolas Absolutas está alicerçado na violência. Uma rememoração de conflitos arquetípicos. Ou melhor, de conflitos masculinos – revisitação do velho e sempre jovem drama de família, muitas vezes enxertado no drama do amor, e sempre colorido pelo sangue da parte mais fraca.
Na mitologia greco-romana encontramos dois exemplos que nos permitem visualizar melhor a questão. O primeiro, uma dessas histórias em que o ódio é o combustível indispensável para proporcionar a grandiosidade do espetáculo, está relacionado com a morte de Euristeu, rei de Argólida. Segundo o oráculo, os habitantes da cidade deveriam escolher o novo rei entre os irmãos Atreu e Triestes. Ocorre que Aérope, esposa de Atreu, era amante de Triestes e, defendendo os interesses do amante, roubou do marido um velocino de ouro. Na guerra contra os Micênios, Triestes propôs que fosse escolhido como Rei aquele que apresentasse um velocino de ouro. Atreu que ignorava ter sido roubado, aceitou o desafio e perdeu o trono, a esposa e a dignidade. Zeus, aquele que tudo vê, não gostou do engodo e, divinamente, colocou ordem na casa. Triestes foi expulso de Argólida. Atreu, algum tempo depois, ao entender tudo o que havia acontecido, fingiu reconciliar-se com o irmão e o chamou de volta, oferecendo-lhe um banquete. Triestes saboreou, com especial apetite, as carnes servidas. Ao final, Atreu revelou que a carne que Triestes havia comido era dos corpos dos três filhos que Triestes havia tido com uma ninfa. Episódio similar pode ser encontrado no romance A festa do bode, de Mário Vargas Llosa.
O segundo exemplo da mitologia greco-romana é mais simples e menos trágico. Anfitrião, marido de Alcmena, estava no campo de batalha. Zeus, também conhecido como “o garanhão” do Olimpo, assumiu as formas físicas de Anfitrião e foi visitar Alcmena. Sem desconfiar que o marido não era o marido, Alcmena permitiu a “conjunção carnal”. Ao cair da tarde, o verdadeiro Anfitrião regressou e, celebrando a saudade e os seus direitos de marido, também efetuou a conjunção carnal. A lenda não conta se Alcmena foi contemplada, naquele dia, por dupla explosão de felicidade, mas a soma desses dois momentos resultou em filhos gêmeos: o filho de Anfitrião chamou-se Íficles; o filho de Zeus chamou-se Herácles (ou Hércules, na versão latina). O que importa, para o nosso contexto, é que Íficles era um mortal e que, apesar de ter participado da expedição dos Argonautas e da guerra de Tróia, nunca foi reconhecido como figura importante da mitologia. A verdade é que Íficles é um ilustre desconhecido, que sempre viveu na sombra do irmão.
Em Pérolas absolutas encontramos inúmeros pontos de contato entre o passado mítico e uma narrativa que procura realçar esses elementos comuns. Vejamos, por exemplo, os três casos (Henrich Mann, Gerald Dürrell e Tiago) que Lídice utiliza para caracterizar a ignomínia desses irmãos que quase chegaram juntos, que disputaram espaço, que fingiram e sofreram, muitas vezes imitando um sorriso de desdém quando na verdade se afogavam em mágoas (Seixas, 2003: 28). O que causa medo e terror em Lídice é a sombra de Íficles, é ser derrotado/superado pelo irmão que obtém sucesso na vida.  O que causa medo e terror em Lídice é entender que os derrotados – sabe? –, os derrotados não são os últimos. São aqueles que quase chegam – são os segundos. (...) Sempre em segundo plano. (Seixas, 2003: 144). Nesse sentido, é sempre interessante lembrar que Gerald Dürrell é aquele que não escreveu O quarteto de Alexandria; é sempre interessante lembrar que Lawrence Dürrell não escreveu, em 1956, talvez como um ato de vingança menor, um livro infanto-juvenil chamado “My family and other animals” (Minha família e outros animais). O Anjo azul,  de Henrich Mann, jamais foi valorizado adequadamente – a sombra de Thomas sempre foi mais intensa. E por fim, Tiago, filho de José, aquele que alguns exegetas acreditam ter sido irmão de Cristo, sempre esbarrou nas cruéis referências bíblicas: Tiago Menor.  
Lídice, além desses três homens que fracassaram na luta contra o irmão, ainda cita, aqui e ali, duas mulheres emblemáticas, Zelda Fitzgerald e Camille Claudel. A presença dessas mulheres parece nos avisar que o fantasma da perda da razão está rondando pela sala, propondo embriaguez, surpresas, prazeres. 
Lídice cita cinco fracassados. Ou melhor, seis, pois Lídice também está em segundo plano, ela que, na disputa fraterna, não conseguiu concretizar o sonho de violência heróica em que se trucida, sem a mínima culpa, o inimigo. Como destruir uma irmã gêmea que enlouquece? A loucura já não é uma forma natural de destruição? Como destruir uma “irmã de sêmen”? Seis fracassados, sete, oito, nove, mil, o que isso importa em um mundo repleto de pedras que não são preciosas? Deus é um geólogo a nos dizer que existe muito berilo e poucas águas-marinhas, muito berilo e poucas esmeraldas, muito berilo. A vida não é ônix ou pérola, a vida é falsificação.
Uma regra básica do darwinismo evolutivo: matar o irmão na infância é sempre vantajoso – elimina a concorrência –, matar o irmão na fase adulta é tolice – diminuí a  possibilidade de ajuda. Eis o conflito: como conviver com aquele que nos ajuda, mas, ao mesmo tempo, nos diminuí? Como conviver com esse fantasma insuportável que é a noção de estar em segundo plano, no lugar maldito? (Seixas, 2003: 29).  
A narrativa de Lídice é um inventário do fracasso – sob o ponto de visto do irmão que foi superado pelo talento ou pelo senso de oportunidade do outro irmão. E é aqui que entra em cena a figura de Anatole. Atenção, senhoras e senhores: é aqui que entram em cena os conflitos de baixo ventre. Homens e mulheres lutam pela posse física, mental, sexual do companheiro. Homens e mulheres lutam por um pedaço de carne – uma vez primitivo, sempre primitivo. É o tesão que determina a tensão. Apesar da metáfora parecer de mau gosto, é aqui que se esclarece o sabor das ostras. Ostras são moluscos bivalves. Conchas são esconderijos. Para alcançar a felicidade, o cavalheiro, por favor, precisa ultrapassar o fosso que separa o castelo dos perigos. Ou será que o senhor está a imaginar que a princesa irá para a cama com o primeiro dragão que aparecer nesta história? É, é impossível não pensar que conchas possuem grandes e pequenos lábios – a melhor parte do sexo está na imaginação. “Petit mort” (pequena morte), dizem os franceses quando querem se referir ao orgasmo. Fênix é uma ave mitológica que renasce das cinzas. Somo tudo isso e concluo: talvez seja essa a proposta que envolve a loucura: perder os sentidos, enfrentar e sobreviver às pequenas mortes, renascer para a vida – como se nada tivesse acontecido.
Mudo de cenário. As duas mulheres, as duas “irmãs de sêmen”, Lídice e Sofia, se encontram em um restaurante, uma com um revolver em punho, a outra como se fosse um alvo fixo. A esposa é a irmã que venceu; a amante, a “outra”, é a irmã que perdeu. O dedo no gatilho e a falta de luz. O conflito se resolve assim, de forma banal. Acabou a luz. Então, a pergunta volta a incomodar: a loucura é a luz ou é a escuridão? As imagens se dissolvem nos dois ambientes. As duas mulheres, as duas irmãs, sentam-se na mesa do restaurante, conversam, pedem ao garçom água e martíni. Lembram do passado e, sobretudo, lembram do homem morto. Pedem comida, pratos iguais, pratos gêmeos e, simbolicamente, comem a carne do morto. Anatole é o laço que sangue que as une. A esposa e a amante se descobrem irmãs, porque veneraram, amaram e odiaram um mesmo homem. Nessa conversa confrontam semelhanças, delimitam as diferenças. Agora, só dentro do peito do homem é temporal (Seixas, 2003: 189).        
             A palavra ostracismo é derivada de “ostraka”, fragmentos de cerâmica onde os gregos escreviam o nome das pessoas consideradas indesejáveis. Sofia e Lídice relegam as cinzas de Anatole ao ostracismo. Anatole passa a ser um elemento menor,, um grão de areia, um corpo estranho entre as duas mulheres, entre as conchas da ostra. Morto o homem, cessa o desejo pelo homem, mas não cessa o desejo da mulher. O desejo é como uma pérola. E as pérolas são produzidas quando um corpo estranho, um grão de areia, por exemplo, se instala no interior da concha, dentro da superfície gelatinosa.  Mas até do horror pode surgir beleza, como na contaminação que faz a ostra verter o nácar, que faz nascer a pérola. (Seixas, 2003: 233).
Eis a encruzilhada: mesmo sem ter esclarecido muitas coisas, mesmo tendo deixado muitos fios soltos, quase como uma recusa de interpretar Pérolas absolutas, quero propor dois finais para essa minha fala. No primeiro, tomo a  voz de Sofia e o silêncio de Lídice, e digo:

A noite dos olhos. A noite do chumbo, da pólvora, das cinzas. Eu me pergunto que nome teria essa noite.
A noite das pérolas.
Silêncio.
Pérolas absolutas.
Silêncio.
Era como Proust, nas cartas, se referia àqueles que, como ele, amavam seus iguais.
Pausa.
Dentro de um só corpo duas almas, duas partes, metades formando um todo, um todo esquerdo, proscrito, maldito até – mas ainda assim um todo. Pérolas absolutas.
Silêncio.
Você quer vir comigo? (Seixas, 2003: 234).

           

            O segundo final é um pouco mais prosaico. Conta a lenda que Zelda Fitzgerald estava sozinha em um quarto de hotel, em Paris. Em dado momento, na janela, começou a gritar: fogo, fogo, fogo! Chamaram os bombeiros, que arrombaram a porta. Zelda estava sentada na cama, chorando. Um bombeiro, ao olhar o quarto intacto, perguntou: Onde está o fogo? E Zelda, batendo no peito, respondeu: aqui, aqui!



 

Referências bibliográficas


ABREU, Caio Fernando. Prefácio. In:  FITZGERALD, Zelda. Esta valsa é minha. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FREITAS FILHO, Armando. 3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
SEIXAS, Heloísa. Pérolas absolutas. São Paulo: Record, 2003.

(Texto apresentado VI Encontro Internacional Fazendo Gênero. Florianópolis, 2004).  

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