quarta-feira, 2 de março de 2011

CANÇÃO DO EXÍLIO


Para Tânia Regina Oliveira Ramos, que conhece raro segredo alquímico: transformar alunos em amigos.
           

Raros são os pesquisadores da literatura brasileira capazes de responder a pergunta: qual é o romance (ou o poema ou o conto) arquétipo sobre o Brasil? Se fosse feita pesquisa sobre o tema, grande seria a probabilidade de serem lembrados vários clássicos, aqueles livros que todo mundo finge ter lido algum dia, provavelmente para escrever tarefa escolar, e que, por isso mesmo, ao serem citados, não comprometem a opinião de ninguém. “Macunaíma” (Mário de Andrade) ou “Grandes Sertões: Veredas” (Guimarães Rosa) são boas alternativas. Entre os textos de não-ficção, ninguém esquece “Os Sertões” (Euclides da Cunha), “Casa Grande & Senzala” (Gilberto Freyre) ou “Raízes do Brasil” (Sérgio Buarque de Hollanda).
Paradoxalmente, também há dificuldades para apontar exemplos (ficcionais ou não)  capazes de retratar a ausência (da pátria, do sentimento de pertença). Mesmo em romances emblemáticos como “Zero” (Ignácio de Loyola Brandão), “Reflexos do Baile” (Antonio Callado) ou “Contra o Brasil” (Diogo Mainardi), onde as mazelas nacionais são dissecadas com precisão cirúrgica, não é possível ignorar que, entre o texto e as entrelinhas, sopra a esperança anestésica, sebastianista, de que alguém surgirá, em algum momento, para consertar a bagunça.
Assim, vamos em frente, construindo um Brasil sem senso crítico, sem identidade, inclusive porque toda vez que surge alguma questão que exige um posicionamento, os “ishpertos”, que raramente encararam as questões cruciais de frente, procuram impor a concórdia, “o deixa prá lá”. Afinal, quem está interessado em mexer nas feridas, em acordar os monstros, em abrir os olhos, despertar do sonho e mergulhar no pesadelo?   
            Entre as inúmeras conclusões possíveis a partir dessas rápidas observações, é possível observar que as narrativas brasileiras publicadas nos últimos 20 ou 30 anos estão contaminadas por temas que pouco ou nada comprometem. E isso também significa um posicionamento ideológico mais comercial (inclusive porque a literatura brasileira nunca escondeu o desejo voraz de estar inserida no mercado econômico).
Em outras palavras, a produção literária mais recente (sem culpa, sem constrangimentos) está procurando, com todas as forças possíveis, negar um contexto sociocultural, um constructo histórico-geográfico particular, único, inequívoco, e que, na falta de uma melhor expressão, poderíamos chamar de brasilidade. Sem deixar de lembrar que “a grama do vizinho é mais verde do que a nossa” e de que é da natureza humana desejar o que nunca terá, a literatura brasileira parece estar migrando (física e psicologicamente) para regiões ou para espaços que não se encontram entre as fronteiras políticas do Brasil.
Particularmente assustador, para os estudos literários, esse distanciamento geográfico, (em que o exílio voluntário1 parece mimetizar a ritualização de algum épico extemporâneo) está contraposto a textos baseados na realidade urbana e rural do Brasil. Alguém saberia explicar porque o Chico Buarque escreveu um romance centralizado em Budapeste, uma cidade que ele admitiu nunca ter visitado? Por que ambientar em Buenos Aires uma novela tão bonita como “Golpe de ar”, de Fabrício Corsaletti? Nos romances de Bernardo Carvalho (provavelmente o mais talentoso dos escritores contemporâneos), a desterritorialização é um elemento natural. Em “Medo de Sade”, a França; “Nove noites” focaliza o Xingu (que é uma espécie de não-lugar, inclusive porque poucos brasileiros conseguem localizá-lo em um mapa!); em “Mongólia”, a Mongólia; parte de “O sol se esconde em São Paulo” se passa no Japão; e, em “O filho da mãe” a ação narrativa transcorre em São Petersburgo. O mais estranho é que todos esses textos (exceto “Nove noites” e uma ou outra cena mais específica) poderiam ser ambientados naquele Brasil que o Jornal Nacional retrata diariamente. Quem tem a violência do Rio de Janeiro não precisa da guerra da Chechênia para discutir a barbárie humana.2
No mesmo tom, a ficção omite a história recente do Brasil. Sobre os “anos de chumbo” (também chamados pela Folha de São Paulo, de “ditamole”) se contam nos dedos os autores que fazem algum comentário ou situam as suas narrativas nesse período. No geral, há um vácuo narrativo entre 1964 e 1980, como se nada tivesse acontecido nesse período – ou melhor, como se o que ocorreu nesse período não interessasse para a confecção literária. Estes argumentos também valem para a morte de Tancredo Neves, que ainda está esperando por algum autor capaz de transformar a dor nacional em narrativa (a exceção é o belíssimo conto “Cortejo em Abril”, da Zulmira Ribeiro Tavares). O desastre Collor de Mello não criou uma geração literária “cara-pintada”.3 Os governos Fernando Henrique e Luis Inácio da Silva são literariamente intocáveis. 4
Além disso, é particularmente significativo o fato de que esses mesmos “retirantes”  recusarem a criação de uma nova Pasárgada.5 Como se tivessem aversão aos “paraísos artificiais”, preferem localizar os seus enredos em território estrangeiro, um ambiente que sempre está  impregnado do glamour que não encontram no Brasil.
George Steiner, ao escreveu sobre aqueles que transitam entre o local de nascimento e o exílio, entre a língua pátria e a estrangeira, observou que a produção desses escritores se mostra “desarraigad[a] porque em casa de modo tão variado”6. Sem discutir a ambigüidade do que significa estar “em casa”7, e relacionando esse comentário com a literatura brasileira, fica a impressão de que, descontados taras e fetiches sexuais, houve contaminação por algum tipo de ressentimento ou ódio sem substância, como que a dizer que nada de bom ou de aproveitável pode ocorrer no país onde nascemos.  Para Carlos Fuentes, “o romance não mostra nem demonstra o mundo, senão que acrescenta algo ao mundo”8. E isso quer dizer, fundamentalmente, que, na medida em que a literatura brasileira está perdendo o contato com as suas raízes mais inequívocas, mais telúricas, os livros resultantes não estão acrescentando muitas coisas ao mundo literário. Envolta na razão econômica e evitando abordar “assuntos chatos” (o passado de opressão política, o carnaval, o futebol, o racismo encoberto), a ficção nacional está sofrendo da crescente necessidade psicológica de retratar o espaço social globalizado, onde, por um desses enganos tão comuns na modernidade, acredita estar inserida.
A coleção “Amores Expressos”, publicada pela Companhia das Letras, e organizada por João Paulo Cuenca, talvez explique parte desse impasse. Dezesseis escritores estão passeando por aqueles lugares que fazem sucesso nas colunas sociais (Paris, Tóquio, Buenos Aires,...). A idéia é colher material para escrever “histórias de amor”9, além de descobrir o que está além das fronteiras físicas do Brasil. Como nada se compara às belezas da ilusão, esse projeto mostra um nítido desprezo por Ouro Preto, Belém do Pará ou Campo Grande. Cidades como Manaus (ver os romances e contos de Milton Hatoum) ou Santos (que o Alberto Martins descreveu com paixão em “A história dos ossos”) foram esquecidas. Também foram anulados da memória narrativa o norte do Paraná (cenário de parte da ficção de Domingos Pellegrini) e o sertão cearense (retratado, entre tantas narrativas, em “Galiléia”, de Ronaldo Correia de Brito). O policromatismo brasileiro foi substituído por cartões postais (ou romances) remetidos do outro lado do mundo, sinalizando para um elemento inevitável: a vida (social ou literária) brasileira está se transformando em uma coleção de souvenires.
             Simultaneamente, essa procura pelo exótico parece ignorar que a terra do futebol, do turismo sexual e do pagode (ou da axé-music ou de um desses ritmos que utilizam, no máximo, dois acordes) está repleta de temas humanos e literários. Ou, em versão mais cínica, aproveitando os versos do Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá” 10.

P.S.: Caminhar na contramão é perigoso – ao mesmo tempo, “escolher o caminho menos trilhado”, como dizia o Robert Frost, é o que constitui “toda a diferença”11. Parte das considerações acima não se aplicam em alguns dos contos do livro “Meu amor”, de Beatriz Bracher. Sem medo, consciente de que temos problemas que precisam ser discutidos literariamente, Beatriz ficcionalizou várias situações recentes: a garotinha que, visitando o pai, caiu (ou foi jogada) de uma janela; o menino que, vítima de seqüestro, foi arrastado pelo asfalto durante vários quilômetros. São situações exemplares, seja pelo horror, seja pela constatação de que a que a vida é mais cruel do que a literatura. Se isso não fosse verdade, como explicar a história da prisão da menina paraense, quinze anos, que foi seviciada durante mais de mês por cerca de trinta homens?
 “Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá; / Sem que desfrute os primores / Que não encontro cá”, dizem os versos do poeta.



1 A ambição de “conquistar o mundo”  é parte significativa do sonho brasileiro. Também  é um tema literário antigo, embora marginal. Entre os seus exemplos mais significativos estão  “Stella Manhattan”, de  Silviano Santiago (publicado em 1985) e “Estive em Lisboa e lembrei de você”, de Luiz Ruffato (2009). Seja por razões econômicas ou pela vontade de viver aventuras que não seriam possíveis em território nacional, o imigrante acredita que vai, ao fim de sua jornada, encontrar riquezas e glórias. Socraticamente, o encontro com a realidade lhe fornece algumas constatações óbvias: viver no território do Outro significa ter que superar hostilidades e o paraíso sonhado se resume em aceitar trabalhar como frentista de posto de gasolina ou entregador de pizza (empregos que, no Brasil, são considerados de terceira classe).
2 Um dos temas de “O filho da mãe”, de Bernardo Carvalho.
3 Significativamente, foram escritores “velhos” que tentaram retratar os “novos” tempos. E isso resultou em pastiches malfeitos. Misturando a estrutura do romance policial com os vícios moralizantes do romance político, José Nêumanne, sem dar nome aos bois, fez uma tentativa pífia com “Veneno na veia”. Luiz Gutemberg, que sempre foi mais jornalista do que escritor, protagonizou outros fracassos: “O jogo da gata parida” e “Rendez-vous no Itamaraty”.  
4 Em direção oposta caminham as literaturas inglesa e norte-americana. Sem esquecer as toneladas de papel utilizadas para imprimir textos sobre os conflitos causados pelo colonialismo e pelas dificuldades sociais  que o Terceiro Mundo precisa superar, acontecimentos recentes são matéria indispensável para a carpintaria literária. O governo Margareth Tatcher e o 11 de setembro são dois exemplos temáticos de uma literatura conectada com a atualidade. Entre os ingleses, a crise econômica, que atingiu principalmente a “working class”, e a guerra das Malvinas estão retratadas em romances de Jonathan Coe (“Bem-vindo ao clube”, “O círculo fechado”), Zadie Smith (“Dentes brancos”), Hanif Kureishi (“Álbum negro”, “Buda do subúrbio”, “Intimidade”), David Mitchell (“Menino de lugar nenhum”), Allan Hollinghurst (“A linha da beleza”), J. G. Ballard (“Terroristas do milênio”, “O reino do amanhã”), entre outros tantos. Sobre a catástrofe americana (World Trade Center) há textos de Don DeLillo (“Homem em queda”), John Updike (“Terrorista”), Joseph O’Neill (“Terras baixas”) – e até um francês, Frédéric Beigbeder (“Windows on the World”), contribuiu significativamente para o tema.
5 Essa rejeição à construção ficcional de um lugar onde se pode, entre outras coisas, dizer, junto com Manuel Bandeira, “Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei” (In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 18 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 117-118) causa estranheza. Mas, ao mesmo tempo, reafirma a necessidade psicológica de integração a um contexto globalizado. Em Paris ou Londres, a vida pode não ser mais feliz do que em Pasárgada, mas seguramente está ancorada em um território inscrito no imaginário de cada leitor. Em outras palavras, é a necessidade afirmativa da verossimilhança que faz com que as narrativas se desloquem para um território distante, mas passível de ser verificado nos guias turísticos.
6 STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 17.
7 Edward Said discorda das teses extraterritoriais ao afirmar que “... embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre”. (In: SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 46.
8 FUENTES, Carlos. Geografia do romance. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 19.
9 A descoberta da paixão e a desilusão amorosa, que são temas clássicos da música dor-de-corno (bolero,  samba-canção, soft rock, MPB,...), retorna na literatura como uma fotografia mais elaborada de um estado sentimental que devasta corações e mentes, quase metáfora da morte lenta, que não possuí antídoto ou compensação, exceto a humilhação pública, momento em que o músico ou o escritor compartilha com a platéia/o leitor a sua dor.     
10 FACIOLI, Valentim; OLIVIERI, Antonio Carlos. Antologia da poesia brasileira: Romantismo. São Paulo: Ática, 1985. p. 26.
11 “Two roads converged in a wood, and I – / I took the one less travelled by, / And that has made all the diference. (In: HUNTER, Jim [Org.]. Modern Poets I. London: Faber and Faber, 1968. p. 58.  



(texto publicado – sem as notas e a dedicatória – no Diário Catarinense, Caderno de Cultura, 26/12/2009).








































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