quinta-feira, 3 de março de 2011

O OLHAR INSUFICIENTE DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA


A construção de um olhar demanda vários níveis de percepção. De um lado, há o observador; de outro, o que é observado. Em alguns momentos, próximos ou ao longe, aquele que relata a observação: o narrador. São os personagens (envolvidos – passiva ou ativamente – na narrativa), e os seus deslocamentos espaço-temporais, que delimitam a extensão do campo de visão e o que nele está inserido. Simultaneamente, é o olhar que localiza e reconhece esses elementos e as suas conexões.

Olhar é pensar, pesar a vastidão do campo que se abre diante da visão, mundo físico que se solidifica na liquidez da retina, percurso entre a (in)diferença e a ação. A “verdade”, essa ilusão do método, está impregnada de vários discursos, ideologias e conexões semânticas: na modernidade, instante em que o fragmento predomina, o olhar perde o foco e desloca-se para o periférico – juntamente com a noção de totalidade.1
Uma imagem é projetada, mas o que o olhar apreende é diverso – muitas vezes transformado em afastamento axiológico (compreender o que está acontecendo depende do diminuir de velocidade daquilo que a cada instante se desloca) e que  subtraí do observador – de certa forma, do objeto observado – o desejo e o gozo que originaram a visão e o olhar. Essa fratura fornece um cenário que nega a lição de Epicuro: os sentidos são os mensageiros do conhecimento (Apud NOVAES, 1988, 15).
O olhar está escrito/inscrito em um contexto que se ramifica (e se complementa) através das ausências e dos vazios, como se fosse um quebra-cabeças insolúvel: momento em que a estética da dispersão projeta-se entre os destroços resultantes do embate entre o fato e a miragem. 2
A cartografia do olhar implica em ir além da demarcação de fronteiras ou de certezas. Fornecer visibilidade ao aparente invisível, acolhendo as so(m)bras, as ausências e os prolongamentos secretos da matéria constituí um dos procedimentos do prover dimensão e espacialidade (além de outros elementos: cor, forma, altura, largura,  textura...) em objetos e imagens que, em um anterior tempo impreciso, aparentavam ser constituídos por traços aleatórios e inexatos. Ao visível se opõe o que está oculto pelo outro lado do corpo: é o olhar que identifica e reconhece essa “zona indeterminadas”. 
Nesse percurso, há um momento que assombra: inúmeras vezes o olhar não alcança resgatar a totalidade do que está ocorrendo diante dos olhos: a soma desse instante mostra-se diferente da soma proposta pela imagem contida/construída pelo olhar. 
Ocorre um desencontro: o olhar não vê – impedido/impelido por outras imagens ou pela redução da compreensão. Mais do que gravitar em torno da falta (de sentido, de percepção, de razão para a sua existência), a perplexidade do observador (indivíduo emanado do mundo das imagens) se estabelece através dos abismos da linguagem – da  cisão entre o que está ao alcance do olhar e o que se perdeu, da distância inacessível entre o que está próximo e o que está além. A dicotomia entre o visível (macro) e o invisível (micro) afasta o entendimento e revela um mundo fracionado. É o império da disjunção: olhar é recortar, dividir espaços, delimitar a territorialidade, estabelecer prioridades – ao mesmo tempo em que convida o olhar do leitor para uma viagem lúdica e lúcida pelas vertigens e voragens do desencontro entre a imagem e o deslumbramento. Tal percurso implica em um complexo operar entre o prazer e a dor. 3
Em O Crime do Professor de Matemática (LISPECTOR, 1993, 147-155), o olhar, mesmo nos raros momentos em que consegue abranger e acolher significativo número de elementos do discurso que o envolve, se mostra insuficiente. Ou seja, é incapaz de absorver os conteúdos (e, por extensão, as implicações ideológicas).
 A aterradora falta de visão com que o Professor de Matemática esconde e, simultaneamente, nega a sua culpa está contornada por uma densidade abjeta, construída para que esse impasse seja visualizado como um objeto a deriva na modernidade capitalista.


Síntese narrativa

Um homem, o Professor de Matemática, sobe a colina. No seu rosto, um par de óculos. Nos seus ombros, um saco pesado. No saco, um corpo. O corpo de um cão. Um cão que o Professor de Matemática encontrou morto, em uma esquina. O animal vai ser  enterrado. O Professor de Matemática, enquanto cava a sepultura, lembra de uma outra história. Lembra de um outro cão, o cão José, que ele abandonou, em um tempo não muito distante, em uma outra cidade.


O aluno

O Professor de Matemática é um adepto da  racionalidade como estrutura de vida – a análise fria dos números e a certeza algébrica constituem as características mais importantes de sua personalidade. As suas decisões sociais, assim como em uma equação matemática, sempre estiveram dimensionadas no imperativo categórico da lógica cartesiana (que impede os desvios emocionais e instaura a certeza, a correção e a eficiência).
Com o mesmo tipo de estrutura logocêntrica que adota na vida pública, o Professor de Matemática conduz a sua vida privada. É o encontro com o cadáver do cão desconhecido que coloca em xeque esse arcabouço consolidado pela negação das dúvidas. O cão morto produz um curto-circuito emocional.
Quando o Professor de Matemática, transgredindo com hábitos sociais cristalizados, decide promover um enterro “digno” ao cão desconhecido, caracteriza a expressão do seu luto – momento em que o sofrimento não pode mais ser contido pela psique e transborda simbolicamente para a realidade, através de lágrimas, mudanças de comportamento, sentimento de culpa, uso de roupas negras, etc... 4
O Professor de Matemática não é mais um homem que está enterrando um cão, é um homem que gostaria de enterrar o passado (apesar de não enterrar as lembranças que antecedem ao ritual mortuário) e que, ao enterrar o cão desconhecido, assenta mais uma camada de tijolos na muralha de indiferenças que construiu ao redor de si mesmo (essa estrutura de contenção é uma rota de fuga para um local onírico onde a felicidade não precisa travar duelos com o sofrimento, o remorso e a incapacidade de pedir perdão).
Confirmando que as suas certezas são provisórias, o Professor de Matemática adquire ciência de um paradoxo: cada pá de terra que arremessa na cova (para encobrir e esconder o corpo do cão desconhecido), desenterra e revela um pouco do passado – agonia e culpa.


A ordem aritmética

O trabalho braçal (abrir a cova para enterrar o corpo do cão desconhecido) e as bifurcações do discurso e da culpa estabelecem os rudimentos de uma falsa premissa. Diante do horror causado pela noção de que cometeu uma falta grave, o Professor de Matemática não consegue equacionar, de maneira algébrica, os termos do seu discurso de defesa: mostra-se emocionalmente  inseguro, ansioso por respostas, incapaz de encontrar no mundo objetivo um escudo contra o que o atormenta.
Por isso, em uma atitude que beira o desespero, o Professor de Matemática ambiciona descobrir a si mesmo. É uma tarefa de difícil execução e que exige um novo ritual: re(l)atar, junto com o cão que é enterrado e desenterrado, as amarras com o passado, com as decisões que precisou tomar ao longo da vida, e, sobretudo, com os desacertos da existência. Desenterrar o cão, que ele acabou de enterrar, é o primeiro passo na direção desse reconstruir.
Condenado ao tempo imediato, que exige uma ligação afetiva com o contexto em que está inserido (entrecruzamento entre vida pessoal e história), o Professor de Matemática desperta da letargia e adquire consciência de que a ataraxia perdeu o seu poder de entorpecimento e de analgesia. Adquire, como compensação, o esclarecimento. E, de contrabando, a dor.


Kyno, philos

O Crime do Professor de Matemática se reporta às relações entre um homem e dois cães. Entre um homem e a sua própria imagem – projetada nos dois cães e dimensionada em abstrações e culpa.
De um lado, o cão primeiro, o cão José, somente adquire estatuto de existência no tempo pretérito, porque circunscrito aos ditames da memória, do reconstruir histórico; momento em que a escritura recupera fragmentos imersos no passado – o esquecimento está relacionado com a distância temporal: o presente reconstrói de um modo novo o seu próprio passado (KOTHE, 1976, 99). Essa consciência fundamenta o luto. A agonia do Professor de Matemática está expressa na ligação afetiva que, independente da distância física e temporal, mantém com o cão José e que está expressa na perda do amor.
Por outro lado, o cão desconhecido já não é mais um cão, no sentido estrito do termo – na condição de cadáver torna-se mais importante do que quando fora vivo. Sua morte, em lugar do petrificar da matéria e da memória, estabelece visibilidade para um simulacro (no sentido proposto por Baudrillard): o corpo do cão morto interrompe a transmutação da vida em morte (fenômeno físico-químico originário da decomposição orgânica do corpo) e instituí a morte como uma conexão fraturada com a vida. O cão desconhecido só poderá ser considerado extinto no instante em que cessar a sua ligação com o Professor de Matemática. E isso não será  possível enquanto o Professor de Matemática não conseguir suturar/saturar o interstício que existe entre a falta e o logos.
A ligação do cadáver do cão desconhecido com o mundo das representações cotidianas se concretiza através da uma nova convenção (esse hábito desonesto de relacionar a experiência adquirida no passado com os objetos que mudam de nome, de classificação, mas que conservam a substância original).
 O cão desconhecido é uma representação do cão José. E o seu enterro, embora não seja o enterro do cão José, simula o momento em que ocorreu a “morte” simbólica do cão José. É a sobreposição dos dois corpos que potencializa essa imagem – uma forma de repetição incessante do pesadelo.
Enterrar o cão desconhecido é uma manifestação religiosa: prova material do arrependimento e uma espécie desajeitada e canhestra de relicário, que objetiva reconstruir simbolicamente a imagem primitiva do cão José.


As moedas de troca

Torna-se impossível reatar as conexões afetivas quando abandonamos  quem confia em nós. Ao Professor de Matemática falta o entendimento do significado inserido na amizade (amicitia) que o cão José lhe devotou. 5 Por isso, circunscrito ao sistema de escambo capitalista, quer fornecer para o cão morto o amor que não foi capaz de entregar ao cão que abandonou: “quis que ele [o cão morto], para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia” (LISPECTOR, 1993, 149).
Tamanho esforço é inútil, porque não está relacionado com o exercício da paixão afetiva, mas ao equívoco que envolve a troca do objeto amoroso pela sua representação. 6


O coveiro e o cadáver

O cadáver do cão desconhecido é o elemento deflagrador das lembranças do Professor de Matemática – que ambiciona não mais visualizar no cão morto “a morte” do cão José.
Esse estratagema não funciona – ver a morte do cão José, através do cadáver do cão desconhecido, é um erro de análise. Mais do que um erro, é um pecado – e alguns pecados não merecem perdão.
O Professor de Matemática percebe que praticou um crime. Simultaneamente, descobre que não há um Deus capaz de perdoar esse tipo de falta: “ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições” (LISPECTOR, 1993, 154).
Dupla falta: o abandono e o crime. Mas as palavras e os pensamentos não bastam para descrever o impacto provocado pelas lacunas, pelas pausas, pelo não-dito, pelas imprecisões da linguagem. As palavras e os pensamentos se perdem no espaço, nos interregnos do inominável  – assim como o som do sino da igreja, o barulho da pá cavando o terreno ou o ruído do suor que escorre pelo corpo e amálgama a pele ao tecido das roupas.
As palavras, elementos de um discurso que trafega da corrosão à subversão, são inúteis – não conseguem esgotar/abranger a narrativa com os fragmentos que compõem os acontecimentos, a totalidade.
O discurso de desespero do Professor de Matemática se realiza como um deslizar metonímico, construído como ruptura e abismo, como articulação do sofrimento.


A revelação

Diante de tamanha azáfama, uma nova topografia se estabelece. O buraco (cova, sepulcro) vai se alastrando pelo chão, como um câncer.  A terra amontoa-se ao lado. A pá abre o chão e ajuda a compor a cenografia do desespero: o homem, o cão morto, a culpa e o monte de terra. Cavar eqüivale a um ritual de passagem, instante em que se separam o antes e o depois em “camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana” (NUNES, 1989, 269). Enterrar é fabricar “uma aparência do terreno” (LISPECTOR, 1993, 150).
Walter Benjamin lembra a parábola do homem que, próximo da morte, revela aos seus herdeiros a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos, tomando as palavras pelo sentido mais imediato, reviram as terras e nada encontram. No outono, as vinhas produzem mais do qualquer outra da região. Somente então compreenderam que o pai havia lhes transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho (BENJAMIN, 1985, 114).
Para o Professor de Matemática é difícil identificar as sutilezas que envolvem e constituem o conceito benjaminiano de Erlebnis, a experiência vivida. 7 
Assim como um anti-herói trágico, o Professor de Matemática constrói uma existência que se alimenta de enganos. Enterrar o cão desconhecido não descobre nenhum tesouro – é apenas cavar um equívoco, revolver a terra, corroborar com a inutilidade. O afeto pelo cão José e a sua representação foram substituídos pela fraude. O cão José, assim como o tesouro da experiência, não pode ser trocado pelo corpo de um outro cão. Por qualquer outro cão. Mesmo que esse cão tenha sido encontrado morto, em uma esquina.


A arqueologia do saber

Está configurada uma estratégia arqueológica: cães enterram e desenterram ossos. Analogamente, o Professor de Matemática enterra e desenterra o passado, através do cão desconhecido. Esse ritual zoofágico (tangencial à irracionalidade) mostra uma das maneiras com que o inconsciente se alimenta dos fósseis da memória e transforma o obscuro em iluminação: esse é o tesouro que está escondido nas entrelinhas do conto de Clarice Lispector e que o Professor de Matemática, se fosse menos racional, menos atento ao linear, poderia encontrar.      
Mas, para que ocorra essa inversão, necessário se faz um processo de cura mental: perceber que o funeral do cão desconhecido, embora projete um desejo, não configura o gozo.
Para poder aceitar essa revelação com a serenidade das descobertas mais singelas, apenas o olhar (mesmo que auxiliado por uma prótese óptica, os óculos) é insuficiente. A solidão dos que atingem um estágio superior de entendimento eqüivale ao descer aos infernos e sofrer com uma forma particular de loucura: a verdade.   
Desenterrar o cão desconhecido – que não mais está metamorfoseado de cão José – significa libertar as aflições e o Professor de Matemática não está preparado para dar esse passo na direção do abismo da lucidez.


A simbologia do capital

Há uma outra camada simbólica interposta/sobreposta pelo texto e a sua leitura: não há casualidade nas múltiplas referências à visão estreita, localizada, sem horizontes, deficitária do Professor de Matemática (LISPECTOR, 1993, 147-148).
Miopia é a palavra-chave. Chave do mistério. Mistério que não é mistério, apenas inexatidão, momento em que o olhar, esvaziado de sua significação, não consegue capturar o que está expresso na amplitude contextual (quanto mais perto da verdade, maior a dificuldade para o entendimento). 
O Crime do Professor de Matemática não tem um propósito explícito de determinar a extensão e a intenção do olhar insuficiente do Professor de Matemática.
 Concretamente, ao Professor de Matemática, faltam elementos para que possa entender o espaço exterior, a amplidão, o longe; falta-lhe aptidão para ver, sentir e compreender além dos fatos mais simplórios; falta-lhe uma vigorosa reflexão sobre o mundo em ruínas, sobre a época catastrófica que ele habita.
Sem os óculos, a visão periférica do Professor de Matemática fica restrita às cercanias do desassossego – insuficiente para abrigar a extensão do sensível (local onde o agônico é paralelo com a gnose do viver). É por isso que o narrador insiste em destacar as múltiplas vezes em que, através de um movimento pendular, o Professor de Matemática tira e coloca os óculos e/ou guarda-os no bolso.
O Professor de Matemática é consumido pela sensação de que, sem os óculos, os seus olhos e o seu corpo adquirem jovialidade. Em oposição, com os óculos, há um avançar temporal devastador, o rosto adquire a maturação característica da meia-idade. O Professor de Matemática quer ser jovem, mas experiente; não quer ser experiente e velho.
Os óculos se revelam como um espelho do tempo, a idade da razão, a metáfora indesejada: é constrangedor. O Professor de Matemática não é mais o homem que, em um passado ileso, podia ver o perto e o longe sem uma moldura no rosto. Por isso, mas não apenas por isso, ele se sente incomodado por necessitar da prótese óptica; necessitar de um instrumento que o faça ver mais preciso – ou melhor, que o faça ver – e que, ao ver, permita o alcance de um novo estrato do compreensão.
Por alguma razão obscura (talvez nervosismo, talvez um tique nervoso, talvez para limpar o suor do rosto), tirar os óculos do rosto, manuseá-los, guardá-los no bolso se revela um incomodo, uma situação lamentável – mesmo sabendo que a passagem do racional para o irracional, e vice-versa, não depende de próteses ópticas ou de atos mecânicos. O que faz a diferença é uma determinada maneira de olhar. Quando muito, tirar e colocar os óculos é um instante de pausa, um momento para respirar mais fundo, um pretexto para a reflexão e o encaminhamento ao que será enfocado e enquadrado pelo globo ocular.
Na modernidade capitalista, o olhar que vê pouco ou que nada vê (porque imune ao entendimento) é o que se consagra como ideal – porque indefeso aos mecanismos de sedução que o rodeiam. Para que isso se concretize, o olhar, seja míope ou astigmático, esteja com a retina danificada ou com o cristalino envolto por alguma película opaca (catarata), precisa de alguma forma de proteção. Proteção, neste caso, significa “enterrar” algumas imagens ou fatos (presentes ou passados), opor-se ao descortinar do horizonte visual.
Modernamente, essa proteção surge na forma de mercadoria. 8 Ou seja, como um dos elementos fundacionais do capitalismo. No conto de Clarice Lispector, os óculos identificam essa função: instrumentos de castração visual. O olhar, restrito ao foco das lentes, não mais se preocupa em capturar o que se deslocou (ou que está à margem) do campo de visão. O olhar é transferido para o fetiche, alterando a rota do desejo e encaminhando-o para “o que deve ser visto”. A perda da noção de totalidade – e de necessidade – estabelece vínculos com a ética discursiva do consumo (uma forma de perversão da economia das relações afetivas).


Penúltimas palavras

Na cena final da narrativa, o Professor de Matemática, depois que encontrou “friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido” (LISPECTOR, 1993, 155), desce a colina. Vai encontrar-se com a família.
Como um aluno que luta para apre(e)nder a lição, o Professor de Matemática “começou a descer as escarpas em direção ao seio da família” (LISPECTOR, 1993, 155),  movido pela esperança de um novo tempo – instante em que a redenção intelectual poderá socorrer aqueles que, através do erro, se revelam humanos.
Por isso, é possível supor que, em tempo impreciso, o Professor de Matemática voltará à colina, para contemplar, mais uma vez, a imagem do cadáver do cão desconhecido – ninguém consegue fugir do vazio que se abisma no espelho de seus medos.


Últimas palavras

Tráfego de olhares. De um lado, o cão José – e a sua representação ficcional, o cão desconhecido; de outro, o Professor de Matemática. Velocidades desiguais, rotas em colisão, campo minado das interdições emocionais, encruzilhada: dar sentido ao que parece não possuir sentido. 
 Olhares desencontrados, focados em distâncias e enganos. Olhares insuficientes. A palavra “falta” se mostra completa – uma falta que se completa em sua falta, porque inscrita na (in)tensão discursiva imposta pelo tecido narrativo (e as suas simulações). Conjunto de falsificações, enganos e artifícios – que se completam no jogo sedutor que está impresso no olhar: impresso para o olhar, impresso como olhar, impresso como uma forma de vedar o entendimento.   
O Professor de Matemática rompe o seu período de hibernação emocional quando (des)enterra o cão desconhecido – sem saber que esse ato significa um encontro mi(s)tico com a ressurreição (regresso ao entendimento dos fatos, “salto qualitativo” que exorciza a ordem castradora da norma social). 
O Professor de Matemática só consegue adquirir discernimento da pobreza ética, moral e emocional em que a sua vida está reduzida quando descobre que a lucidez também é um método lógico (apesar de irrealizável – desejar não é suficiente para alcançar e garantir o gozo, porque o gozo sempre está restrito pelas barreiras da consciência). 
Enquanto o cão José se expressa como uma tese (enterrar o passado) que migra para a antítese, o cão desconhecido é a antítese (desenterrar o passado) que elabora uma nova tese. Essa lógica não é garantia de felicidade. Muito pelo contrário. Novos problemas, novos impasses, novas interdições. 
De qualquer forma, o olhar insuficiente permite uma forma canhestra de percepção aos impasses da representação. O sujeito (aquele que observa) e o seu percurso existencial (o que é observado) encontram-se na borda do conhecimento: é esse olhar que impedirá que o Professor de Matemática aceite a insanidade proposta pelos “instrumentos de correção visual”; é esse olhar (mesmo que incapaz de abrangência) que constituí a promessa (mesmo que inconsciente) de que, em algum instante, irá se transformar no olhar integrador, que consegue captar toda a cena – sintonia entre o presente que recupera o passado e o passado que está oprimido pelo presente – e dela retirar a percepção da presença e da ausência de sentido histórico.
Olhar é a redenção e a condenação de quem ousa “olhar” além do olhar e redefinir o espaço em que estão inseridas as suas negações: os olhos são feitos para não verem a falta. Mas o olhar está lá, presente na mancha, assinalando o crime originário, o preço a pagar por ser sujeito do desejo. Essa mancha nunca se apaga, pois o homem nunca se purifica do gozo (QUINET, 2002, 290).


Referências Bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 
KOTHE, Flávio René. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
NOVAES, Adauto. “De olhos vendados”. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
NUNES, Benedito. “A paixão de Clarice Lispector”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
ROSOLATO, Guy. A força do desejo: o âmago em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
ROUANET, Sergio Paulo. “O olhar iluminista”. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
VALAS, Patrick. As dimensões do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.





1 Sergio Paulo Rouanet, calcado na experiência intelectual da Ilustração e fazendo um contraponto com as ilusões estéticas da modernidade, propõe uma revisão conceitual baseada em uma “ética da visão e do olhar”, consoante com “a totalidade do real”: “é preciso ver tudo: é o reino da visibilidade universal. Aplicada às coisas, essa máxima significa que a totalidade do real se torna disponível para a visão ilustrada. A natureza é um livro a ser lido, sem censura e sem nenhuma necessidade de um nihil obstat por parte da autoridade, secular ou religiosa. O mundo é uma superfície plana que se oferece inteira ao olhar, em suas articulações empíricas e em suas leis inteligíveis” (ROUANET, 1988, 128).
2 Todo discurso é cúmplice do encantamento, afirma Jean Baudrillard, realçando que a sedução é aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade. Em outras palavras, os mecanismos de sedução que estão inseridos no discurso atuam como elementos da estética da dispersão, esvaziando e apagando o conteúdo original. Esse processo, que está amparado em interesses pouco claros, visa construir um discurso volátil, para melhor fascinar os outros (BAUDRILLARD, 1991, 61-62).
3 Todas as atividades humanas, no sentido freudiano, estão relacionadas com o desejo sexual. A interdição do gozo e instauração das carências afetivas surgem como conseqüência imediata do interdito, produzido pela norma social. Para uma melhor compreensão desse pensamento, ver, entre outros, ROSOLATO, 1999, e VALAS, 2001.
4 Ver PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998. Especialmente as pp. 7-112.
5 Jurandir Freire Costa está entre aqueles que, nas questões afetivas, defendem um comportamento unificado: não existe ética sem afeto. E complementa o raciocínio, afirmando: a paixão não é inconciliável com o sentido de realidade; simplesmente acrescenta à realidade “valores e perspectivas pessoais” (COSTA, 1999, 198).
6 O simulacro, cópia da cópia (Baudrillard), elemento característico da era da reprodução técnica (Benjamin), transmuta e banaliza os sentimentos, os significados e a sintaxe dos objetos. O olhar de perplexidade do anjo da história, sendo carregado pela tempestade que é o progresso (BENJAMIN, 1985, 226), nos mostra que é necessário, em algum instante, lutar contra a alienação produzida pelo fetiche da mercadoria.
7 Para uma leitura da “erlebnis”, ver, entre outros, o prefácio escrito por Jeanne Marie Gagnebin para o primeiro volume das Obras Escolhidas de Walter Benjamin (In: BENJAMIN, 1985, p. 7-19).
8 Os objetos, na modernidade, perderam a sua característica de elementos do real. É através do  capitalismo que as relações que instrumentalizam o consumo inventam uma nova dimensão para as imagens. É o fetiche da mercadoria que institui a negação do real.


(Texto publicado no Anuário de Literatura n° 11, Curso de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, 2003. P. 95-106)

Nenhum comentário:

Postar um comentário